Segundo Quadro
As luzes voltam a acender-se, lentamente, até dia claro.
Ouvem-se, distante, ruídos esparsos da cidade que acorda. Um ou
outro buzinar, foguetes estouram saudando Iansan, a Santa
Bárbara nagô, e o sino da igreja começa a chamar para a missa
das seis. Mas nada disso acorda Zé-do-Burro. Entra, pela ladeira,
a Beata. Toda de preto, véu na cabeça, passinho miúdo, vem
apressada, como se temesse chegar atrasada. Passa por Zé-do-
Burro e a cruz sem notá-los. Pára diante da escada e resmunga.
Fica a critério da direção utilizar neste quadro figurantes que
descerão a ladeira e entrarão na igreja
BEATA
Porta fechada. É sempre assim. A gente corre, com medo de
chegar atrasada e quando chega aqui a porta está fechada. Por
que não abrem primeiro a porta, pra depois tocar o sino? Não,
primeiro tocam o sino, depois abrem a porta. Isso é esse sacristão
(Pára de resmungar ao ver a cruz. Ajeita os óculos, como se não
acreditasse no que está vendo. Aproxima-se e examina
detalhadamente a cruz e o seu dono adormecido. Sua expressão é
da maior estranheza) Virgem Santíssima!
Neste momento, abre-se a porta da igreja e surge o
Sacristão. É um homem de perto de 50 anos. Sua
mentalidade, porém, anda aí pelos quatorze. Usa óculos de
grossas lentes, é míope. O cabelo teima em cair-lhe na
testa, acentuando a aparência de retardado mental. Ele
parece bêbedo de sono. Boceja largamente, ruidosamente,
depois de abrir a primeira banda da porta. Espreguiça-se e
solta um longo gemido. Depois que abre toda a porta,
encosta-se por um momento no portal e cochila, sem dar
pela Beata, que se aproxima.
BEATA
(Dá-lhe uma leve cotovelada)
Ei, rapaz...
SACRISTÃO
(Desperta muito assustado)
Sim, Padre, já vou!...
BEATA
Que padre coisa nenhuma...
SACRISTÃO
Ah, é a senhora...
BEATA
Vou me queixar ao Padre Olavo dessa mania de bater o sino antes
de abrir a porta da igreja. Eu ouço o toque, venho pondo as tripas
pela boca, chego aqui, e a porta ainda está fechada.
SACRISTÃO
Também por que a senhora vem logo na missa das seis? Por que
não vem mais tarde?
BEATA
(Malcriada)
Porque quero. Porque não é da sua conta.
(Aponta para a cruz)
Que é isso?
SACRISTÃO
Isso o quê?
BEATA
Está vendo não? Uma cruz enorme no meio da praça...
SACRISTÃO
(Apura a vista)
Ah, sim... agora percebo... é uma cruz de madeira... e parece que
há um homem dormindo junto dela...
BEATA
Vista prodigiosa a sua! Claro que é uma cruz de madeira e que há
um homem junto dela. O que eu quero saber é a razão disso.
SACRISTÃO
Não sei... como quer que eu saiba? Por que a senhora não
pergunta a ele?
BEATA
(Bruscamente)
Eu é que não vou perguntar coisa nenhuma!
SACRISTÃO
Talvez ele tenha desgarrado da procissão...
BEATA
Que procissão? De Santa Bárbara? A procissão ainda não saiu. E
já viu alguém carregar cruz em procissão? Nem na do Senhor
Morto.
(Benze-se e entra apressadamente na igreja)
O Sacristão aproxima-se de Zé-do-Burro, curioso. E quando
entra Bonitão, pela ladeira. Ele vê a igreja aberta, estranha.
BONITÃO
Oxente...
SACRISTÃO
(Olha-o aparvalhado)
É uma cruz mesmo...
BONITÃO
E que pensou você que fosse? Um canhão?
(Aproxima-se de Zé-do-Burro)
Sono de pedra... não acordou nem com os foguetes de Santa
Bárbara. Dizem que é assim que dormem as pessoas que têm a
consciência tranqüila e a alma leve...
(Cínico)
Eu também sou assim, quando caio na cama é um sono só.
(Sacode Zé-do-Burro)
Camarado... oh, meu camarado!...
ZÉ
(Desperta)
Oh, já é dia...
BONITÃO
Já. E a igreja já está aberta, você pode entregar o carreto.
ZÉ
(Levanta-se, com dificuldade, os músculos adormecidos e
doloridos)
É verdade...
BONITÃO
Eu voltei aqui pra lhe dizer o número do quarto de sua mulher. É
o 27. Um bom quarto, no segundo andar.
(Apressadamente)
Pelo menos foi o que o porteiro me garantiu.
ZÉ
Ah, obrigado...
BONITÃO
O hotel é aquele ali, o primeiro, logo depois de subir a ladeira e
dobrar à direita. Hotel Ideal Eu demorei um pouco porque fiquei
jogando damas com o porteiro.
SACRISTÃO
(Vivamente interessado)
Ganhou?
BONITÃO
Empatamos.
SACRISTÃO
Ah, eu também sou louco por damas!
BONITÃO
(Examina-o de cima a baixo)
Francamente, ninguém diz...
Padre Olavo surge na porta da igreja.
SACRISTÃO
(Como se tivesse sido surpreendido em falta)
Padre Olavo!...
ZÉ
Preciso falar com ele...
Sacristão dirige-se apressadamente à igreja. Pára na porta,
ante o olhar intimidador de Padre Olavo. É um padre moço
ainda. Deve contar, no máximo, quarenta anos. Sua
convicção religiosa aproxima-se do fanatismo. Talvez, no
fundo, isto seja uma prova de falta de convicção e
autodefesa. Sua intolerância - que o leva, por vezes, a
chocar-se contra princípios de sua própria religião e a
confundir com inimigos aqueles que estão ao seu lado - não
passa, talvez, de uma couraça com que se mune contra
uma fraqueza consciente.
PADRE
(Para o Sacristão)
Que está fazendo aí?
SACRISTÃO
(À guisa de defesa)
Estava conversando com aqueles homens.
PADRE
E eu lá dentro à sua espera para ajudar à missa.
(Repara em Bonitão e Zé-do-Burro)
Quem são?
SACRISTÃO
Não sei. Um deles quer falar com o senhor.
ZÉ
(Adianta-se)
Sou eu, Padre.
(Inclina-se, respeitoso e beija-lhe a mão)
PADRE
Agora está na hora da missa. Mais tarde, se quiser...
ZÉ
É que eu vim de muito longe, Padre. Andei sete léguas...
PADRE
Sete léguas? Para falar comigo.
ZÉ
Não, pra trazer esta cruz.
PADRE
(Olha a cruz, detidamente)
E como a trouxe... num caminhão?
ZÉ
Não, Padre, nas costas.
SACRISTÃO
(Expandindo infantilmente a sua admiração)
Menino!
PADRE
(Lança-lhe um olhar enérgico)
Psiu! Cale a boca!
(Seu interesse por Zé-do-Burro cresce)
Sete léguas com essa cruz nas costas. Deixe ver seu ombro. Zé-do-
Burro despe um lado do paletó, abre a camisa e mostra o ombro.
Sacristão espicha-se todo para ver e não esconde a sua impressão
SACRISTÃO
Está em carne viva!
PADRE
(Parece satisfeito com o exame)
Promessa?
ZÉ
(Balança afirmativamente a cabeça)
Pra Santa Bárbara. Estava esperando abrir a igreja...
SACRISTÃO
Deve ter recebido dela uma graça muito grande! Padre faz um
gesto nervoso para que o Sacristão se cale.
ZÉ
Graças a Santa Bárbara, a morte não levou o meu melhor amigo.
PADRE
(Padre parece meditar profundamente sobre a questão)
Mesmo assim, não lhe parece um tanto exagerada a promessa? E
um tanto pretensiosa também?
ZÉ
Nada disso, seu Padre. Promessa é promessa. É como um negócio.
Se a gente oferece um preço, recebe a mercadoria, tem que pagar.
Eu sei que tem muito caloteiro por aí. Mas comigo, não. É toma lá,
dá cá. Quando Nicolau adoeceu, o senhor não calcula como eu
fiquei.
PADRE
Foi por causa desse... Nicolau, que você fez a promessa?
ZÉ
Foi. Nicolau foi ferido, seu Padre, por uma árvore que caiu, num
dia de tempestade.
SACRISTÃO
Santa Bárbara! A árvore caiu em cima dele?!
ZÉ
Só um galho, que bateu de raspão na cabeça. Ele chegou em casa,
escorrendo sangue de meter medo! Eu e minha mulher tratamos
dele, mas o sangue não havia meio de estancar.
PADRE
Uma hemorragia.
ZÉ
Só estancou quando eu fui no curral, peguei um bocado de bosta
de vaca e taquei em cima do ferimento.
PADRE
(Enojado)
Mas meu filho, isso é atraso! Uma porcaria!
ZÉ
Foi o que o doutor disse quando chegou. Mandou que tirasse
aquela porcaria de cima da ferida, que senão Nicolau ia morrer.
PADRE
Sem dúvida.
ZÉ
Eu tirei. Ele limpou bem a ferida e o sangue voltou que parecia
uma cachoeira. E que de que o doutor fazia o sangue parar?
Ensopava algodão e mais algodão e nada. Era uma sangueira que
não acaba mais. Lá pelas tantas, o homenzinho virou pra mim e
gritou: corre, homem de Deus, vai buscar mais bosta de vaca,
senão ele morre!
PADRE
E... o sangue estancou?
ZÉ
Na hora. Pois é um santo remédio. Seu vigário sabia? Não sendo
de vaca, de cavalo castrado também serve. Mas há quem prefira
teia de aranha.
PADRE
Adiante, adiante. Não estou interessado nessa medicina.
ZÉ
Bem, o sangue estancou. Mas Nicolau começou a tremer de febre
e no dia seguinte aconteceu uma coisa que nunca tinha
acontecido: eu saí de casa e Nicolau ficou. Não pôde se levantar.
Foi a primeira vez que isso aconteceu, em seis anos: eu saí, fui
fazer compras na cidade, entrei no Bar do Jacob pra tomar uma
cachacinha, passei na farmácia de “seu” Zequinha pra saber das
novidades - tudo isso sem Nicolau. Todo mundo reparou, porque
quem quisesse saber onde eu estava, era só procurar Nicolau. Se
eu ia na missa, ele ficava esperando na porta da igreja...
PADRE
Na porta? Por que ele não entrava? Não é católico?
ZÉ
Tendo uma alma tão boa, Nicolau não pode deixar de ser católico.
Mas não é por isso que ele não entra na igreja. É porque o vigário
não deixa.
(Com grande tristeza)
Nicolau teve o azar de nascer burro... de quatro patas.
PADRE
Burro?! Então esse... que você chama de Nicolau, é um burro?!
Um animal?!
ZÉ
Meu burro... sim senhor.
PADRE
E foi por ele, por um burro, que fez essa promessa?
ZÉ
Foi... é bem verdade que eu não sabia que era tão difícil achar
uma igreja de Santa Bárbara, que ia precisar andar sete léguas
pra encontrar uma, aqui na Bahia...
BONITÃO
(Que assistiu a toda a cena, um pouco afastado, solta uma
gargalhada grosseira)
Ele se estrepou.
Padre Olavo olha-o, surpreso, como se só agora tivesse
notada a sua presença. Bonitão pára de rir quase de súbito,
desarmado pelo olhar enérgico do padre.
ZÉ
Mas mesmo que soubesse, eu não deixava de fazer a promessa.
Porque quando vi que nem as rezas do preto Zeferino davam
jeito...
PADRE
Rezas?! Que rezas?!
ZÉ
Seu vigário me disculpe... mas eu tentei tudo. Preto Zeferino é
rezador afamado na minha zona: Sarna de cachorro, bicheira de
animal, peste de gado, tudo isso ele cura com duas rezas e três
rabiscos no chão. Todo o mundo diz... e eu mesmo, uma vez,
estava com uma dor de cabeça danada, que não havia meio de
passar... Chamei preto Zeferino, ele disse que eu estava com o Sol
dentro da cabeça. Botou uma toalha na minha testa, derramou
uma garrafa d’água, rezou uma oração, o sol saiu e eu fiquei bom.
PADRE
Você fez mal, meu filho. Essas rezas são orações do demo.
ZÉ
Do demo, não senhor.
PADRE
Do demo, sim. Você não soube distinguir o bem do mal. Todo
homem é assim. Vive atrás do milagre em vez de viver atrás de
Deus. E não sabe se caminha para o céu ou para o inferno.
ZÉ
Para o inferno? Como pode ser, Padre, se a oração fala em Deus?
(Recita)
“Deus fez o Sol. Deus fez a luz, Deus fez toda a claridade do
Universo grandioso. Com sua Graça eu te benzo, te curo. Vai-te
Sol, da cabeça desta criatura para as ondas do Mar Sagrado, com
os santos poderes do Padre do Filho e do Espírito Santo”. Depois
rezou um Padre Nosso e a dor de cabeça sumiu no mesmo
instante.
SACRISTÃO
Incrível!
PADRE
Meu filho, esse homem era um feiticeiro.
ZÉ
Como feiticeiro, se a reza é pra curar?
PADRE
Não é pra curar, é para tentar. E você caiu em tentação.
ZÉ
Bem, eu só sei que fiquei bom.
(Noutro tom)
Mas com o Nicolau não houve reza que fizesse ele levantar. Preto
Zeferino botou o pé na cabeça do coitado, disse uma porção de
orações e nada. Eu já estava começando a perder a esperança.
Nicolau de orelhas murchas, magro de se contar as costelas. Não
comia, não bebia, nem mexia mais com o rabo para espantar as
moscas. Eu vi que nunca mais ia ouvir os passos dele me
seguindo por toda a parte, como um cão. Até me puseram um
apelido por causa disso: Zé-do-Burro. Eu não me importo. Não
acho que seja ofensa. Nicolau não é um burro como os outros. É
um burro com alma de gente. E faz isso por amizade, por
dedicação. Eu nunca monto nele, prefiro andar a pé ou a cavalo.
Mas de um modo ou de outro, ele vem atrás. Se eu entrar numa
casa e me demorar duas horas, duas horas ele espera por mim,
plantado na porta. Um burro desses, seu padre, não vale uma
promessa?
PADRE
(Secamente, contendo ainda a sua indignação)
Adiante.
ZÉ
Foi então que comadre Miúda me lembrou: por que eu não ia no
candomblé de Maria de Iansan?
PADRE
Candomblé?!
ZÉ
Sim, é um candomblé que tem duas léguas adiante da minha
roça.
(Com a consciência de quem cometeu uma falta, mas não muito
grave)
Eu sei que seu vigário vai ralhar comigo. Eu também nunca fui
muito de freqüentar terreiro de candomblé. Mas o pobre Nicolau
estava morrendo. Não custava tentar. Se não fizesse bem, mal não
fazia. E eu fui. Contei pra Mãe-de-Santo o meu caso. Ela disse que
era mesmo com Iansan, dona dos raios e das trovoadas. Iansan
tinha ferido Nicolau... pra ela eu devia fazer uma obrigação, quer
dizer: uma promessa. Mas tinha que ser uma promessa bem
grande, porque Iansan, que tinha ferido Nicolau com um raio, não
ia voltar atrás por qualquer bobagem. E eu me lembrei então que
Iansan é Santa Bárbara e prometi que se Nicolau ficasse bom eu
carregava uma cruz de madeira de minha roça até a Igreja dela,
no dia de sua festa, uma cruz tão pesada como a de Cristo.
PADRE
(Como se anotasse as palavras)
Tão pesada como a de Cristo. O senhor prometeu isso a...
ZÉ
A Santa Bárbara.
PADRE
A Iansan!
ZÉ
É a mesma coisa...
PADRE
(Grita)
Não é a mesma coisa!
(Controla-se)
Mas continue.
ZÉ
Prometi também dividir minhas terras com os lavradores pobres,
mais pobres que eu.
PADRE
Dividir? Igualmente?
ZÉ
Sim, padre, igualmente.
SACRISTÃO
E Nicolau... quero dizer, o burro, ficou bom?
ZÉ
Sarou em dois tempos. Milagre. Milagre mesmo. No outro dia já
estava de orelha em pé, relinchando. E uma semana depois todo o
mundo me apontava na rua: - “Lá vai Zé-do-Burro com o burro de
novo atrás!”
(Ri)
E eu nem dava confiança. E Nicolau muito menos. Só eu e ele
sabíamos do milagre.
(Como que retificando)
Eu, ele e Santa Bárbara.
PADRE
(Procurando inicialmente controlar-se)
Em primeiro lugar, mesmo admitindo a intervenção de Santa
Bárbara, não se trataria de um milagre, mas apenas de uma
graça. O burro podia ter-se curado sem intervenção divina.
ZÉ
Como, Padre, se ele sarou de um dia pro outro...
PADRE
(Como se não o ouvisse)
E além disso, Santa Bárbara, se tivesse de lhe conceder uma
graça, não iria fazê-lo num terreiro de candomblé!
ZÉ
É que na capela do meu povoado não tem uma imagem de Santa
Bárbara. Mas no candomblé tem uma imagem de Iansan, que é
Santa Bárbara...
PADRE
(Explodindo)
Não é Santa Bárbara! Santa Bárbara é uma santa católica! O
senhor foi a um ritual fetichista. Invocou uma falsa divindade e foi
a ela que prometeu esse sacrifício!
ZÉ
Não, Padre, foi a Santa Bárbara! Foi até a igreja de Santa Bárbara
que prometi vir com a minha cruz! E é diante do altar de Santa
Bárbara que vou cair de joelhos daqui a pouco, pra agradecer o
que ela fez por mim!
PADRE
(Dá alguns passos de um lado para outro, de mão no queixo e por
fim detém-se diante de Zé-do-Burro, em atitude inquisitorial)
Muito bem. E que pretende fazer depois... depois de cumprir a sua
promessa?
ZÉ
(Não entendeu a pergunta)
Que pretendo? Voltar pra minha roça, em paz com a minha
consciência e quite com a santa.
PADRE
Só isso?
ZÉ
Só...
PADRE
Tem certeza? Não vai pretender ser olhado como um novo Cristo?
ZÉ
Eu?!
PADRE
Sim, você que acaba de repetir a Via Crucis, sofrendo o martírio
de Jesus. Você que, presunçosamente, pretende imitar o Filho de
Deus...
ZÉ
(Humildemente)
Padre... eu não quis imitar Jesus...
PADRE
(Corta terrível)
Mentira! Eu gravei suas palavras! Você mesmo disse que
prometeu carregar uma cruz tão pesada quanto a de Cristo.
ZÉ
Sim, mas isso...
PADRE
Isso prova que você está sendo submetido a uma tentação ainda
maior.
ZÉ
Qual, Padre?
PADRE
A de igualar-se ao Filho de Deus.
ZÉ
Não, Padre.
PADRE
Por que então repete a Divina Paixão? Para salvar a humanidade?
Não, para salvar um burro!
ZÉ
Padre, Nicolau...
PADRE
É um burro com nome cristão! Um quadrúpede, um irracional! A
Beata sai da igreja e fica assistindo à cena, do alto da escada.
ZÉ
Mas Padre, não foi Deus quem fez também os burros?
PADRE
Mas não à Sua semelhança. E não foi para salvá-los que mandou
seu Filho. Foi por nós, por você, por mim, pela Humanidade!
ZÉ
(Angustiadamente tenta explicar-se)
Padre, é preciso explicar que Nicolau não é um burro comum... o
senhor não conhece Nicolau, por isso... é um burro com alma de
gente...
PADRE
Pois nem que tenha alma de anjo, nesta igreja você não entrará
com essa cruz!
(Dá as costas e dirige-se à igreja. O sacristão trata logo de seguilo).
ZÉ
(Em desespero)
Mas Padre... eu prometi levar a cruz até o altar-mor! Preciso
cumprir a minha promessa!
PADRE
Fizesse-a então numa igreja. Ou em qualquer parte, menos num
antro de feitiçaria.
ZÉ
Eu já expliquei...
PADRE
Não se pode servir a dois senhores, a Deus e ao diabo!
ZÉ
Padre...
PADRE
Um ritual pagão, que começou num terreiro de candomblé, não
pode terminar na nave de uma igreja!
ZÉ
Mas Padre, a igreja...
PADRE
A igreja é a casa de Deus. Candomblé é o culto do diabo!
ZÉ
Padre, eu não andei sete léguas para voltar daqui. O senhor não
pode impedir a minha entrada. A igreja não é sua, é de Deus!
PADRE
Vai desrespeitar a minha autoridade?
ZÉ
Padre, entre o senhor e Santa Bárbara, eu fico com Santa
Bárbara.
PADRE
(Para o Sacristão)
Feche a porta. Quem quiser assistir à missa que entre pela porta
da sacristia. Lá não dá para passar essa cruz.
(Entra na igreja)
A Beata entra também apressadamente atrás do padre. O
Sacristão, prontamente, começa a fechar a porta da igreja,
enquanto Zé-do-Burro, no meio da praça, nervos tensos,
olhos dilatados, numa atitude de incompreensão e revolta,
parece disposto a não arredar pé dali. Bonitão, um pouco
afastado, observa, tendo nos lábios um sorriso irônico. A
porta da igreja se fecha de todo, enquanto um foguetório
tremendo saúda Iansan.
CAI O PANO LENTAMENTE.
Segundo Ato
Primeiro Quadro
Aproximadamente, duas horas depois. Abriu-se a vendola e o
Galego aparece trepado num caixote, amarrando um cordão com
bandeirolas vermelhas e brancas que vai da porta da venda ao
sobrado do lado oposto. Zé e sua cruz continuam no meio da
praça. Ouve-se um pregão: “Beiju... olha o beiju!” Logo após, surge
no alto da ladeira uma preta em trajes típicos, com um tabuleiro
na cabeça. Ela desce a ladeira e ao passar pelo Galego saúda.
MINHA TIA
Iansan lhe dê um bom-dia.
GALEGO
(Espanhol)
Gracias, Minha Tia.
Minha Tia vai até à igreja e aí, junto dos degraus, pára.
A critério da direção e em momentos em que não
prejudiquem a ação, transeuntes cruzarão a praça, durante
todo o ato.
MINHA TIA
(Para o Galego)
Quer vir aqui dar uma mãozinha pra sua tia, meu branco?
Galego apressa-se a ir ajudá-la. Retira primeiro o cavalete
que está sobre o tabuleiro, abre-o, depois ajuda-a a tirar o
tabuleiro da cabeça e colocá-lo em cima do cavalete.
MINHA TIA
Santa Bárbara lhe pague.
(Nota Zé-do-Burro)
Oxente! Que é aquilo?
GALEGO
Não sei. Já estava acá quando abri a venda. Parece maluco.
(Volta a pregar as bandeirolas, enquanto Minha Tia põe-se a
arrumar o fogareiro, procura acendê-lo).
Desce a ladeira, passo mole, preguiçoso, Dedé Cospe-Rima.
Mulato, cabeleira pixaim, sob o surrado chapéu de coco -
um adorno necessário à sua profissão de poetacomerciante.
Traz, embaixo do braço, uma enorme pilha de
folhetos: abecês, romances populares em versos. E dois
cartazes, um no peito, outro nas costas. Num se lê: “ABC
da Mulata Esmeralda - uma obra-prima” e no outro “Saiu
agora, tá fresco ainda! O que o cego Jeremias viu na Lua”.
DEDÉ
(declama)
Bom dia, Galego amigo!
dia assim eu nunca vi;
para saudar Iansan,
não repare eu lhe pedi:
me empreste por obséquio
dois dedos de parati.
GALEGO
É, com esta história de hacer versos, usted sempre me leva na
conversa.
(entra na venda e dá a volta por trás do balcão)
É boa mesmo essa do cego Jeremias?
(Serve o parati).
DEDÉ
(Bombástico, teatral)
Uma epopéia. Uma nova Ilíada, onde Tróia é a Lua e o cavalo de
Tróia é o cavalo de São Jorge!
(Tira um exemplar e coloca sobre o balcão)
Em paga do parati.
GALEGO
Si, pêro... yo prefiro la otra, la da mulata Esmeralda.
DEDÉ
Uma prova de bom gosto, Galego!
(Troca os folhetos)
É também uma obra-prima. Lembra Castro Alves, modéstia à
parte.
(Bebe o parati de um trago. Refere-se às bandeirinhas)
Bandeirinhas vermelhas e brancas, as cores de Iansan. Depois diz
que não crê em candomblé.
GALEGO
Yo no creo, pêro hay quem crea. E yo soy um comerciante...
DEDÉ
Somos dois!
(Estende novamente o cálice)
Mais uma dose. Esta eu pago amanhã.
(Galego faz cara feia, mas enche de novo o cálice).
A Beata entra da direita e detém-se junto a Minha Tia, ao
ver Zé-do-Burro. Mostra-se surpresa e indignada.
BEATA
É o cúmulo! Ainda está aí!
MINHA TIA
Não vai abrir a igreja hoje, Iaiá? Dia de Santa Bárbara...
BEATA
(Lança um olhar acusador a Zé-do-Burro).
Não enquanto esse indivíduo não for embora.
MINHA TIA
Que foi que ele fez?
BEATA
Quer entrar com essa cruz na igreja.
MINHA TIA
Só isso?
BEATA
E você acha pouco? Acha que Padre Olavo ia permitir?
MINHA TIA
Oxente! Por que não? Foi promessa que ele fez?
BEATA
Foi. Mas promessa de candomblé. Pra uma tal de Iansan... que
Deus me perdoe.
(Benze-se).
(Dirige-se para a esquerda e ao passar por Zé-do-Burro insulta-o)
Herege!
(Sobe a ladeira, seguida do olhar de comovedora incompreensão
de Zé-do-Burro).
DEDÉ
(Que ouviu a conversa. Para o Galego)
Vou ver se Minha Tia me dá um abará.
(Atravessa a praça. Não sem mostrar-se intrigado e curioso ao
passar por Zé-do-Burro)
Bom dia, Minha Tia!
MINHA TIA
Bom dia, seu Dedé.
(Oferece)
Acarajé, abará, beiju... Vem benzer!
DEDÉ
(Aponta)
Um abará. Pago daqui a pouco, quando entrar o primeiro dinheiro.
MINHA TIA
Eu já sabia...
(Entrega o abará embrulhado numa folha de bananeira).
DEDÉ
(Referindo-se a Zé-do-Burro)
Que história é essa?
MINHA TIA
O Senhor ouviu?
DEDÉ
Ouvi.
MINHA TIA
(Com respeito)
Obrigação pra Iansan...
(Toca com as pontas dos dedos o chão e a testa).
DEDÉ
Por isso o Padre não deixou ele entrar?
MINHA TIA
É... coitado.
DEDÉ
Chegou a fechar a porta.
MINHA TIA
O senhor entende?
DEDÉ
Entendo não.
MINHA TIA
O Padre é um homem tão bom.
DEDÉ
A senhora acha?
MINHA TIA
Então. Ele é tão amigo dos pobres, faz tanta caridade. Sei não.
O Guarda entra pela direita. Vai direto a Zé-do-Burro. É um
homem que procura safar-se dos problemas que se lhe
apresentam. Sua noção do dever coincide exatamente com
o seu temor à responsabilidade. Seu maior desejo é que
nada aconteça, a fim de que a nada ele tenha que impor a
sua autoridade. No fundo, essa autoridade o constrange
terrivelmente e mais ainda o dever de exercê-la.
GUARDA
Olá, amigo.
ZÉ
Olá.
GUARDA
(Refere-se à cruz)
É para a procissão de Santa Bárbara?
ZÉ
Não.
GUARDA
Porque a procissão não sai daqui, sai do Mercado aqui perto e vai
até à igreja da Saúde.
ZÉ
Não tenho nada com essa procissão.
GUARDA
E o senhor está aqui fazendo o quê? Esperando a festa? Ainda é
muito cedo. São oito e meia da manhã. Só na parte da tarde é que
isso pega fogo.
ZÉ
Estou aqui desde quatro e meia da manhã.
GUARDA
Quatro e meia?!
(Coça a cabeça, preocupado)
O senhor deve ser um devoto e tanto! Mas acontece que escolheu
um mau lugar...
ZÉ
A culpa não é minha.
GUARDA
Sim, eu sei, não foi o senhor quem inventou a festa de Santa
Bárbara. Mas eu também não tenho culpa de ser guarda. Minha
obrigação é facilitar o trânsito, tanto quanto possível.
ZÉ
Sinto muito, mas não posso sair daqui.
GUARDA
(Sua paciência começa a esgotar-se)
Ai, ai, ai, ai, ai... eu estou querendo me entender com o senhor...
ZÉ
(Irritando-se também um pouco)
Eu também estou querendo me entender com o senhor e com todo
o mundo. Mas acho que ninguém me entende.
Dedé Cospe-Rima, que assistiu a toda a cena, não resiste à
curiosidade e vem presenciá-la mais de perto. Minha Tia
também acompanha tudo com interesse.
ZÉ
Aquela mulher me chamou de herege, o Padre fechou a porta da
igreja como se eu fosse Satanás em pessoa. Eu, Zé-do-Burro,
devoto de Santa Bárbara.
DEDÉ
Mas afinal, o que é que o senhor quer?
ZÉ
Que me deixem colocar esta cruz dentro da igreja, nada mais.
Depois, prometo ir embora. E já estou vexado mesmo por isto!
DEDÉ
Foi promessa. Promessa que ele fez.
GUARDA
(Raciocina, - operação que lhe parece custar tremendo esforço
físico)
Promessa... colocar a cruz dentro da igreja... Não vejo dificuldade
nenhuma nisso. Fala-se com o padre e...
ZÉ
Se o senhor conseguir que ele abra a porta e me deixe entrar, está
tudo resolvido.
GUARDA
(Pensa mais um pouco, vê que não há outra maneira de resolver o
problema, decide-se)
Pois bem, eu vou falar com ele.
(Dirige-se para a porta da igreja. Ante os olhares de grande
expectativa do Galego, de Dedé, de Minha Tia).
DEDÉ
Não vou lá ajudar também porque eu e esse padre estamos de
relações cortadas.
(Sai)
GUARDA
(Bate na porta várias vezes, sem resultado, encosta o rosto na
porta e chama)
Padre? Abra um instante, por favor!
Segundos após, abre-se uma fresta e surge por ela a cabeça
do Sacristão, receoso.
GUARDA
Quero falar com o padre.
SACRISTÃO
(Certifica-se de que não há perigo, abre um pouco mais a porta).
Entre!
Guarda tira o quepe e entra. Sacristão fecha a porta
rapidamente. Rosa desce a ladeira. Vem um pouco
apressada, como se temesse não mais encontrá-lo ali. Mas
quando vê Zé-do-Burro, diminui o passo, tranqüiliza-se em
parte. Não perde, entretanto, um certo ar culposo procura
disfarçar.
ROSA
Você ainda está aí!
(Nota a igreja fechada)
A igreja não abriu?
ZÉ
Abriu, sim. Mas o Padre não quer me deixar entrar com a cruz
ROSA
Por quê?
ZÉ
(Balança a cabeça, na maior infelicidade)
Não sei, Rosa não sei. Há duas horas que tento compreender...
mas estou tonto tonto como se tivesse levado um coice no meio da
testa. Já não entendo nada parece que me viraram pelo avesso e
estou vendo as coisas ao contrário do que elas são. O céu no lugar
do inferno... o demônio no lugar dos santos
ROSA
(Refletindo na própria experiência)
É isso mesmo. de repente, a gente percebe que é outra pessoa.
Que sempre foi outra pessoa é horrível
ZÉ
Mas não é possível, Rosa. Eu sempre fui um homem de bem
Sempre temi a Deus.
ROSA
(Concentrada em seu problema)
Zé, isso está parecendo castigo!
ZÉ
Castigo? Castigo por quê? Por eu ter feito uma promessa tão
grande? Por ter sido no terreiro de Maria de Iansan? Mas se santa
Bárbara não estivesse de acordo com tudo isso, não tinha feito o
milagre
ROSA
Zé, esqueça Santa Bárbara. Pense um pouco em nós.
ZÉ
Em nós?
ROSA
Em mim, Zé.
ZÉ
Em você?
ROSA
Sim Zé, em mim, sua mulher.
ZÉ
Que é que você quer? Não dormiu, não descansou?
ROSA
(Sem fitá-lo)
Zé, vamos embora daqui.
ZÉ
Agora?
ROSA
Sim, agora mesmo.
ZÉ
Não posso Você sabe que eu não posso voltar antes de chegar ao
fim da promessa. Não ia ter sossego o resto da vida.
ROSA
Você acredita demais nas coisas.
Zé
É porque você não pensa no que pode acontecer.
ROSA
Mais do que já aconteceu?
ZÉ
Que aconteceu? A caminhada, as noites sem dormir, e agora ser
xingado como a figura do diabo? Tudo isso é nada, comparado
com o castigo que pode vir.
ROSA
Mas se o Padre não quer deixar você entrar com a cruz, que é que
você ainda vai ficar fazendo aqui?
ZÉ
O Guarda foi falar com ele. Estou esperando.
(Como que desculpando-se por não pensar na situação dela)
Você, se quiser, pode ir comer qualquer coisa.
ROSA
(Ante a impossibilidade de comunicar a ele o seu problema)
Já tomei café no hotel.
ZÉ
Não era bom o hotel que aquele camarada arranjou?
ROSA
Muito bom. Tinha até pia no quarto e colchão de mola.
ZÉ
Fiquei um pouco preocupado.
ROSA
(Ferida pela falta de ciúmes dele)
Comigo?
ZÉ
Você num hotel, sozinha. Cidade grande, a gente nunca sabe. Se
bem que o moço garantiu que era hotel de família.
ROSA
Não tinha então que ter cuidado. O moço era de toda confiança.
Tão amável, tão prestativo...
REPÓRTER
(Entra acompanhado do Fotógrafo)
Lá está ele.
(Vai a Zé, enquanto o Fotógrafo circula à procura de ângulos. O
Repórter é vivo e perspicaz. Dirige um cumprimento entusiasta a
Zé-do-Burro)
Bom dia, amigo!
(Aperta efusivamente a mão de Zé-do-Burro)
Parabéns! O senhor é um herói.
ZÉ
(com estranheza)
Herói?
REPÓRTER
(Com entusiasmo)
Sim, sete léguas carregando esta cruz.
(Calcula o peso)
Pesada, hem? Sete léguas... quarenta e dois quilômetros. A maior
marcha que eu fiz foi de vinte e quatro quilômetros, no Serviço
Militar. E o fuzil não pesava tanto assim.
(Ri, mas seu riso murcha como um balão, ante o ar de
desconfiança de Rosa e Zé-do-Burro)
Oh, desculpe... eu sei que o senhor fez uma promessa. A
comparação não foi muito feliz...
(Para o Fotógrafo)
Carijó, pode bater uma chapa.
(Posa de frente para Zé-do-Burro, de caderno e lápis em punho)
Finja que está falando comigo.
ZÉ
(Começa a impacientar-se)
Fingir que estou falando... pra quê?
REPÓRTER
E dentro de algumas horas o Brasil inteiro vai saber. O senhor vai
ficar famoso.
ZÉ
(Contrariado)
Mas eu não quero ficar famoso, eu quero...
ROSA
(Interrompe, em tom de repreensão)
Que é isso, Zé. Seja mais delicado com o moço. Ele é da gazeta...
REPÓRTER
Mulher dele?
ROSA
Sou. Também andei sete léguas - meu pé tem cada calo d’água
deste tamanho.
REPÓRTER
Maravilhoso. E em quanto tempo cobriram o percurso?
ROSA
(Não entendeu)
Como?
REPÓRTER
Quero dizer: quando saíram de lá, de sua cidade?
ROSA
Da roça. Saímos ontem de manhãzinha. Cinco horas da manhã.
REPÓRTER
A que horas chegaram aqui?
ROSA
Antes das cinco.
REPÓRTER
Fizeram o percurso então em 24 horas. Com uma cruz que deve
pesar?...
(Olha interrogativamente para Zé-do-Burro)
ZÉ
(Contrariado)
Não sei, não pesei.
REPÓRTER
Por menos que pese, é um “record”! Sob este aspecto, podemos
considerar um grande feito esportivo. Uma prova de resistência
física...
(para Rosa)
e de dedicação...
Rosa sorri, envaidecida, sentindo-se heroína também.
REPÓRTER
Mas como nasceu a idéia dessa... peregrinação?
(As perguntas são feitas a Zé-do-Burro, mas este recusa-se a
respondê-las).
ROSA
Não nasceu idéia nenhuma. O burro adoeceu, ia morrer - ele fez
promessa pra Santa Bárbara.
REPÓRTER
O burro? Que burro?
ROSA
O Nicolau.
ZÉ
(Irritado)
Por quê? O senhor também vai achar que o meu burro não vale
uma promessa?
REPÓRTER
Não, de modo algum... eu... eu apenas não sabia... então, tudo
isso... quarenta e dois quilômetros... a cruz... tudo por causa de
um burro...
(Repentinamente, antevendo o interesse que despertará a
reportagem)
Fabuloso!
ROSA
E não foi só isso. Ele prometeu também repartir o sítio com aquela
cambada de preguiçosos.
ZÉ
Que preguiçosos. Gente que quer trabalhar e não tem terra.
REPÓRTER
Repartir o sítio... diga-me, o senhor é a favor da reforma agrária?
ZÉ
(Não entende)
Reforma agrária? Que é isso?
REPÓRTER
É o que o senhor acaba de fazer em seu sítio. Redistribuição das
terras entre aqueles que não as possuem.
ZÉ
E não estou arrependido, moço. Fiz a felicidade de um bocado de
gente e o que restou pra mim dá e sobra.
REPÓRTER
(Toma notas)
É a favor da reforma agrária.
ZÉ
É bem verdade que se o meu burro não tivesse ficado doente, eu
não tinha feito isso...
REPÓRTER
Mas, e se todos os proprietários de terra fizessem o mesmo. Se o
governo resolvesse desapropriar as terras e dividi-las entre os
camponeses?
ZÉ
Seria muito bem feito. Cada um deve trabalhar o que é seu.
REPÓRTER
(Ofensiva)
É contra a exploração do homem pelo homem. O senhor pertence
a algum partido político?
ZÉ
(Com alguma vaidade, dissimulada num sorriso modesto)
Já quiseram me fazer vereador... qual...
ROSA
O que atrapalhou foi o burro.
REPÓRTER
O burro? Por quê?
ROSA
Aonde ele vai, o burro vai atrás. Se ele fosse eleito, o burro
também tinha que ser...
REPÓRTER
É, mas desta vez, “seu”...
ZÉ
Zé-do-Burro, seu criado.
REPÓRTER
...“seu” Zé-do-Burro, o senhor será eleito com burro e tudo.
(Confidencial)
Escute aqui, será que essa história da promessa não é um golpe
para impressionar o eleitorado?
ZÉ
(Ofendido)
Golpe?!
REPÓRTER
E de mestre! Avalio a agitação que o senhor fez com isso. Pelas
estradas, no caminho até aqui, deve ter-se juntado uma
verdadeira multidão para vê-lo passar.
ZÉ
É, tinha...
ROSA
Muito moleque também.
REPÓRTER
E imaginem a volta! A chegada à sua cidade, em carro aberto,
banda de música, foguetes!
ZÉ
O senhor está maluco? Não vai haver nada disso.
REPÓRTER
Vai. Vai porque o meu jornal vai promover. Só faço questão de
uma coisa: que o senhor nos dê a exclusividade. Que não conceda
entrevistas a mais ninguém.
(Noutro tom)
É claro que o senhor terá uma compensação...
(Faz com o indicador e o polegar um gesto característico)
e também a publicidade. Primeira página, com fotografias, o
senhor e sua senhora... mandaremos fotografar também o burro -
em poucas horas o senhor será um herói nacional.
ZÉ
(Profundamente contrariado)
Moço, eu acho que o senhor não me entendeu .. ninguém ainda
me entendeu...
REPÓRTER
(Sem lhe dar atenção)
O diabo foi o senhor ter escolhido um dia como o de hoje. Sábado.
Amanhã é domingo, o jornal não sai. Só segunda-feira. E o nosso
Departamento de Promoções precisaria preparar a coisa...
Podemos dar o furo na edição de hoje, mas o barulho mesmo só
segunda-feira. Quando o senhor pretende voltar?
ZÉ
Por mim, já estava de volta.
Abre-se parcialmente a porta da igreja. O Sacristão deixa o
Guarda passar e torna a fechá-la. O Guarda vem ao
encontro de Zé-do-Burro, que o aguarda sem muita
esperança.
GUARDA
(Balança a cabeça, desanimado)
Não consegui nada.
ZÉ
O senhor falou com o padre?
GUARDA
Falei, argumentei... não adiantou. E ainda tive que ouvir um
sermão deste tamanho. Ele acha que, em vez de ir pedir para
deixar o senhor entrar na igreja, eu devia era levá-lo preso. Claro
que eu não vou fazer isso, mas o senhor bem que podia ter
arranjado uma promessinha menos complicada.
ROSA
Também acho.
GUARDA
Porque não adianta o senhor ficar aqui; o padre já disse que não
abre a porta e não abre mesmo - eu conheço ele.
REPÓRTER
Ótimo! Mas isso é ótimo! Assim temos um pretexto para adiar a
entrega da cruz para segunda-feira. Dará tempo então de
organizarmos tudo. As entrevistas, as apresentações no rádio... e
a sua volta triunfal com batedores e banda de música!
ZÉ
(Cada vez mais contrariado e mais infeliz)
Moço, eu vim a pé e vou voltar a pé.
ROSA
(Ela vislumbrou nas palavras do Repórter uma possibilidade
confusa de libertação, ouviu-as num entusiasmo crescente)
Oxente! Não seja estúpido, homem! O moço está querendo ajudar
a gente.
ZÉ
Então ele que me ajude a convencer o vigário a abrir a porta...
REPÓRTER
Eu vou já entrevistar o vigário. Mas fique certo de uma coisa: seja
qual for o seu objetivo, uma publicidadezinha não fará mal
algum...
(Pisca o olho para Zé-do-Burro, que não percebe a insinuação)
Carijó, bata mais uma chapa.
(Para Zé-do-Burro)
Quer fazer o favor de carregar a cruz?
(Para Rosa)
A senhora também.
Zé-do-Burro fica indeciso, sem palavras para traduzir a sua
indignação.
ROSA
Vamos, Zé!
(Empurra-o para baixo da cruz e coloca-se a seu lado, numa
atitude forçada)
O Guarda também procura, discretamente, aparecer na
fotografia. A cena é caricatural, com Rosa escancarando-se
num sorriso de dentifrício, Zé-do-Burro vergado ao peso da
cruz e de sua imensa infelicidade. E o Guarda, de peito
estufado, disputando honrosamente a sua participação no
acontecimento.
GALEGO
(Sai da venda, apressado e dirige-se ao Fotógrafo)
Um momento! O senhor não podia fazer aparecer também o meu
estabelecimento? Sabe... uma publicidadezinha...
Fotógrafo coloca-se de molde a aparecer, no fundo, a venda.
Galego corre para junto do balcão e posa.
REPÓRTER
Ótimo. Pode bater, Carijó.
O Fotógrafo bate a chapa.
REPÓRTER
Obrigado. Esta vai sair hoje na primeira página.
(Para o Fotógrafo)
Vamos agora entrevistar o vigário.
GUARDA
É melhor o senhor ir pela porta da sacristia.
ZÉ
Eu levo o senhor até lá.
REPÓRTER
(Não gosta da idéia)
Não, acho melhor o senhor esperar aqui...
ZÉ
(Com decisão)
Mas eu quero ir com o senhor.
REPÓRTER
(Cede, de má vontade)
Está bem.
(Sai, com Zé-do-Burro e o Fotógrafo)
Ouvem-se buzinas insistentes.
GUARDA
Garanto que agora o padre vai abrir a igreja. Não há quem não
tenha medo da imprensa.
(Olha na direção da direita).
Eu vou pra lá, que a coisa está piorando.
(Sai pela direita).
Bonitão desce a ladeira e pára na vendola. Rosa o vê e não
esconde a sua emoção.
BONITÃO
(Para o Galego)
Uma dupla.
GALEGO
Olá, Bonitão. Usted por aqui “de madrugada”...
(Serve a cachaça).
ROSA
(Vai à venda e encosta-se no balcão, ao lado de Bonitão)
Um café, moço.
BONITÃO
Ainda?...
ROSA
Ainda.
BONITÃO
Não sei como você agüenta.
ROSA
Eu também não.
BONITÃO
Ele desconfiou de alguma coisa?
ROSA
Nada. Ele só pensa na cruz e na promessa,
BONITÃO
Sabe que eu fui pra casa dormir e não consegui?
ROSA
Por quê?
BONITÃO
Fiquei pensando em você.
ROSA
Melhor que não pense.
BONITÃO
Está arrependida?
ROSA
Estou.
BONITÃO
Agora é um pouco tarde.
ROSA
Não é não. Uma noite a gente pode apagar.
BONITÃO
A gente pode apagar uma porção de noites. Isso não deixa marca.
ROSA
Em mim deixou. Nem sei como ele não vê. Dá até raiva. Dá
vontade de contar tudo.
BONITÃO
Não é má idéia. Ele não é homem violento. Podia era largar você
aqui na cidade e voltar sozinho pra roça. Isso resolvia tudo.
ROSA
Resolvia o quê?
BONITÃO
Sua vida. Você tem futuro.
ROSA
Adianta não. Minha sina é essa mesma. Às vezes eu tenho
vontade, sim, de arrumar a trouxa e ganhar a estrada. Mas não
tenho coragem. E se tivesse, não ia saber pra onde ir...
BONITÃO
Quando eu era menino, fui guia de cego...
ROSA
Não estou cega. E sabia muito bem o que estava fazendo. Como
sei também que sou capaz de fazer de novo, se ele não me levar
daqui. Mesmo sem querer.
BONITÃO
Se você não se livrar dele, vai acabar idiota como ele.
ROSA
(Procurando uma justificativa para sua falta de coragem)
Ele precisa de mim.
BONITÃO
Ele tem o burro.
ROSA
Estúpido!
BONITÃO
Não quis comparar...
ROSA
Ele é muito homem, fique sabendo!
BONITÃO
Se é assim, por que você tem tanta sede?...
ROSA
(Ela se sente cada vez mais empurrada para ele, como para um
abismo, e não há nela, precisamente, um desejo de resistir ao
salto definitivo. Há apenas a imensa fraqueza da pessoa humana
no momento das grandes decisões)
Que tinha você de aparecer aqui de novo?
BONITÃO
Foi você quem veio falar comigo.
ROSA
Você me obriga a fazer o que eu não quero.
BONITÃO
(Ri, cônscio de seu poder de sedução)
Que culpa tenho eu de ter nascido com tantas qualidades?
Ela vai voltar ao centro da praça. Ele a segura pelo braço.
BONITÃO
(Baixo)
Espere...
ROSA
(Idem)
Está louco?
BONITÃO
Pelo jeito, ele ainda vai ficar muito tempo aí. Entendeu?
ROSA
(Solta-se dele com um safanão)
Não entendo nada. Você é doido e eu estou ficando doida também.
BONITÃO
Ele não pode sair de junto da cruz. Mas você pode... pode ir
descansar no hotel... ou mesmo ir rezar em outra igreja, pedir a
outro santo pra ajudar a convencer o padre a abrir a porta... Um
reforço sempre é bom...
Entra Zé-do-Burro. Rosa e Bonitão disfarçam.
MINHA TIA
(Detendo-o)
E então?...
ZÉ
Eles não quiseram que eu entrasse. Acham melhor falar com o
Padre em particular...
MINHA TIA
(Assume uma atitude de extrema cumplicidade)
Meu filho, eu sou “ekédi” no candomblé da Menininha. Mais logo o
terreiro está em festa. Você fez obrigação pra Iansan, Iansan está
lá pra receber!
ZÉ
(Ele não entende)
Como?
MINHA TIA
Eu levo você lá! Você leva a cruz e a santa recebe! Você fica em
paz com ela!
ZÉ
Iansan...
MINHA TIA
Foi ela quem lhe atendeu!
ZÉ
Mas a igreja...
MINHA TIA
Mande o padre pro inferno! Leve a sua cruz no terreiro! Eu vou
com você!
ZÉ
(Hesita um pouco e por fim reage com veemência)
Não, não foi num terreiro que eu disse que ia levar a cruz, foi
numa igreja. Numa igreja de Santa Bárbara.
MINHA TIA
Santa Bárbara é Iansan. E Iansan está lá! Vai baixar nos seus
cavalos! Vamos!
ZÉ
Não. Não é a mesma coisa. Não é a mesma coisa.
Abre-se a porta da igreja e surgem Repórter, Fotógrafo e
Sacristão.
REPÓRTER
(Para o Sacristão)
O senhor acha que o padre não deixa mesmo ele entrar?
SACRISTÃO
O senhor não ouviu ele dizer? É Satanás! Satanás sob um dos
seus múltiplos disfarces!
REPÓRTER
Satanás disfarçado em Jesus Cristo... acho que é um pouco forte.
Em todo caso, isso é lá com ele. Eu confesso que não sou muito
entendido na matéria. O que interessa é mantê-lo aqui, pelo
menos até segunda-feira. Se for preciso, mandarei vir comida e
bebida. Contanto que ele não vá embora antes de segunda-feira.
Zé-do-Burro dá um passo em direção à igreja. Sacristão assustase.
SACRISTÃO
Com licença, senhores, com licença.
(Entra e fecha a porta, precipitadamente).
Fotógrafo vai à vendola.
REPÓRTER
(Vindo a Zé-do-Burro)
Nada feito, meu camarada. O padre é uma rocha.
(Procura estimulá-lo a resistir)
Mas ele vai acabar cedendo. Se você não arredar pé daqui, ele vai
ter que abrir a igreja. Eu lhe garanto. Agora a causa não é
somente sua, é também do nosso jornal. E sendo do nosso jornal,
é do povo!
Zé-do-Burro olha-o como se procurasse inutilmente
entender um ser vindo de outro planeta.
REPÓRTER
Eu o aconselho a resistir. Afinal de contas, é um direito. Direito
que o senhor adquiriu em 42 quilômetros de “via crucis”. Eu
confio no senhor.
(Para Rosa)
Leia o meu jornal hoje à tarde. Vai ser um estouro.
(Sai seguido do Fotógrafo)
BONITÃO
Jornalistas, é?
ROSA
É.
(Com vaidade)
Tiraram o meu retrato. Será que vão publicar mesmo?
BONITÃO
Se estivesse nua, eu garantia. Assim... não sei.
Neste momento, entra Marli pela direita. Ao ver Bonitão
junto a Rosa, avança para ele em atitude agressiva.
MARLI
Eu sabia!... Tinha que estar atrás de algum rabo-de-saia!
BONITÃO
Que é que você vem fazer aqui?
MARLI
Venho saber por que o senhor não apareceu em casa esta noite.
BONITÃO
Que casa?
MARLI
A minha casa.
BONITÃO
Estava indisposto. Fui para o meu hotel.
MARLI
(Mede Rosa de alto a baixo)
Sim, eu estou vendo a sua “indisposição”.
BONITÃO
(Em voz contida, mas enérgico)
Não faça escândalo!
MARLI
Por quê? Está com medo do marido dela?
BONITÃO
Não estou com medo de ninguém, mas não vou deixar você fazer a
senhora passar vexame.
MARLI
(Irônica)
A senhora... se ela é senhora, eu sou donzela...
BONITÃO
(Autoritário)
Marli, me obedeça!
MARLI
Está querendo bancar o machão na frente dela, é?
BONITÃO
Eu não tenho nada com ela!
MARLI
Você passou a noite com ela!
O rosto de Zé-do-Burro se cobre de sombras e ele busca
nos olhos de Rosa uma explicação. Ela não o fita.
BONITÃO
(Segura Marli por um braço, violentamente)
Vamos para casa!
MARLI
Não! Primeiro quero tirar isso a limpo. Quero que essa vaca saiba
que você é meu.
(Com orgulho)
Meu!
(Grita para Rosa)
Esta roupa foi comprada com o meu dinheiro! Esta e todas as que
ele tem!
BONITÃO
(Perde a paciência, ameaçador)
Se você não for para casa imediatamente, nunca mais eu deixo
você me dar nada!
MARLI
(Deixando-se arrastar por ele na direção da direita)
Ele é meu, ouviu? Fique com seu beato e deixe ele em paz! É meu
homem! É meu homem!
Há uma pausa terrivelmente longa, na qual Zé-do-Burro
apenas fita Rosa, silenciosamente, sob o impacto da cena.
Em seu olhar, lê-se a dúvida, a incredulidade e sobretudo o
pavor diante de um mundo que começa a desmoronar. As
luzes se apagam em resistência.
Segundo Quadro
Três horas da tarde. Zé-do-Burro e Rosa continuam no
meio da praça. Minha Tia com seu tabuleiro, na porta da igreja, o
Galego na venda, Dedé Cospe-Rima entra da direita.
“ABC da Mulata Esmeralda”, romance completo contando
toda a vida de Esmeralda, desde o nascimento, no Beco das
Inocências, até a morte, por trinta facadas, na Rua da Perdição.
(Oferece a Zé-do-Burro) 10 cruzeiros...
Zé-do-Burro recusa com um gesto.
DEDÉ
(Lê, declamando)
Ai, meu Senhor do Bonfim, dai-me muita inspiração, dai-me rima
e muita métrica pra fazer a descrição das penas de Esmeralda na
Rua da Perdição.
(Para Zé-do-Burro)
Estava pensando... sabe que essa sua briga com o Padre dava um
abecê? Quer, eu escrevo.
ZÉ
(Com decisão)
Não.
DEDÉ
Por que não quer? Abecê em versos, ficava bonito...
ZÉ
Não.
DEDÉ
Versos que, modéstia à parte, são lidos pela Bahia inteira.
(Com intenção)
Inclusive pelo Padre Olavo... e não é por me gabar, meu camarada,
mas aqui como me vê, poeta pela graça da Virgem e do Senhor do
Bonfim, eu sou um homem temido! Quando eu anuncio que vou
escrever um folheto contando as bandalheiras desse ou daquele
deputado... ah, menino, não tarda o fulano me procurar pra
adoçar meus versos.
(Faz com os dedos um sinal característico de dinheiro).
Se eu anunciar nesta tabuleta que vou escrever o “ABC de Zé-do-
Burro”, tenho certeza de que o Padre abre logo a porta e vem ele
mesmo carregar a cruz.
Zé olha-o com desconfiança.
ROSA
Que é preciso pra isso?
DEDÉ
Bem, o consentimento dele, em primeiro lugar. E em segundo,
sabe... papel está pela hora da morte, a tipografia está cobrando
os olhos da cara...
ROSA
Ah, é preciso pagar...
DEDÉ
Aí uns cinco contos pra ajudar.
(Vai a Zé)
Mas garanto o resultado.
ZÉ
(Vigorosamente)
Não quero que faça nada.
DEDÉ
Olhe que o senhor se arrepende. Garanto que basta anunciar, o
Padre se borra todo...
ZÉ
(Corta, irritado)
Não quero, já disse!
DEDÉ
Está bem. Quem perde é o senhor. O senhor e a Poesia nacional.
Mestre Coca desce a ladeira, gingando e pára na vendola. É
um mulato alto, musculoso e ágil. Veste calças brancas
“boca de sino” e camisa de meia.
COCA
Buenas.
GALEGO
Opa!
DEDÉ
Boa tarde, Mestre Coca.
COCA
Dedé Cospe-Rima... precisa arranjar um serviço de homem, meu
camarada...
(Para o Galego)
Me dá um porongo.
(Galego serve a cachaça)
(Ouvem-se trovões longínquos)
Dia de Santa Bárbara... tem que roncar trovoada.
DEDÉ
Já largou a estiva, Mestre Coca?
COCA
Já. Descarreguei um cargueiro holandês até à uma hora e caí no
mundo. Hoje, dia de Iansan, não é dia de carregar peso, é dia de
vadiar.
DEDÉ
Vamos ter capoeira hoje?
COCA
Mais logo. Mais logo vamos ter vadiação. Vou jogar com
Manoelzinho Sua-Mãe.
(Nota Zé-do-Burro)
Me disseram que tinha aqui um homem querendo entrar na igreja
com uma cruz e o Padre não queria deixar...
GALEGO
É esse aí.
COCA
Mas lugar de cruz não é dentro da igreja?
DEDÉ
É, mais parece que a cruz é pra Iansan, e o Padre não gostou da
história.
COCA
E fechou a porta?
DEDÉ
Não é de admirar. Outro dia ele não quis proibir que eu vendesse
meus livros aqui na porta da igreja?
COCA
Por quê?
DEDÉ
Disse que o “ABC da Mulata Esmeralda” era indecente. Falou isso
num sermão. E de lá pra cá essas beatas quando passam por mim
viram a cara, como se eu fosse a pintura do Cão.
GALEGO
No me gustan los padres. Pero esse está haciendo um buen
servido. Por causa dele a freguesia aumentou e já fui até
fotografado.
DEDÉ
Se ele quisesse, eu fazia o Padre abrir a porta em dois tempos.
GALEGO
Nada. Deixa el hombre aí. Quanto mais demorar, mejor...
DEDÉ
Vou dar um pulo até o Mercado de Santa Bárbara.
COCA
Ah, lá a festança já começou é de hoje. Capoeira, roda de samba...
está bom que está danado.
DEDÉ
Tem turista?
COCA
Vi uns gringos.
DEDÉ
Vou até lá.
(Sobe a ladeira com os folhetos embaixo do braço).
ROSA
(Para o marido)
Sabe que horas são? Três horas da tarde. Você não está com
fome?
ZÉ
Não Vá ali na mulher no tabuleiro, compre qualquer coisa pra
você
(Tira do bolso uma nota)
Rosa toma a nota e vai a Minha Tia
MINHA TIA
Que é, Iaiá?
ROSA
Qualquer coisa pra matar a fome
MINHA TIA
Precisa mesmo É de hoje que vosmincês estão aí.
ROSA
Desde manhã cedo.
MINHA TIA
(Fitando Zé do Burro com simpatia e incredulidade)
E ele parece um homem tão bom
SECRETA
(O “tira” clássico Chapéu enterrado até os olhos, mãos nos bolsos,
inspira mais receio que respeito À primeira vista, tanto pode ser o
representante da lei, como o fugitivo da lei Entra pela direita e
atravessa a cena, lentamente, em direção à vendola Ao passar por
Zé do Burro, demora nele um olhar de desabusada curiosidade)
Uma dupla
(Olha em torno, procurando alguém, consulta o relógio)
ROSA
(Durante a entrada do Secreta, esteve escolhendo alguns quitutes
no tabuleiro da baiana Recebe os agora, embrulhados em folha de
banana, das mãos da preta. Paga)
MINHA TIA
Diga a ele que não desanime, Iansan tem força!
Rosa leva os quitutes para Zé do Burro Este recusa com um
gesto Entra da direita o Guarda, com um jornal na mão
GUARDA
Vejam a Primeira página com retrato e tudo!
(Mostra o jornal a Rosa, que corre ansiosamente)
ROSA
Meu retrato?
GUARDA
Eu também saí.
ROSA
(Examina o retrato)
Hum o senhor saiu muito bem, é cópia fiel!
GUARDA
(Sorri vaidoso)
É eu acho que saí bem vou levar pra minha mulher
ROSA
Quem saiu mal fui eu
(Faz uma careta de desagrado)
Horrível!
GUARDA
Não ligue Fotografia de gazeta é assim mesmo
ZÉ
(Sua atitude para com Rosa é agora de recalcada e surda revolta
Embora ele não pareça ter certeza ainda de sua infidelidade,
instintivamente começa a perceber que ela se encontra do outro
lado, do lado daqueles que, por este ou aquele motivo, não o
compreendem, ou fingem não compreendê-lo)
Afinal, que é que diz aí?
GUARDA
(Como se só agora lhe ocorresse ler a reportagem)
Ah, sim (lê) “O novo Messias prega a revolução”
ZÉ
(Estranha)
Revolução?
(Espicha o pescoço e lê por cima do ombro do guarda)
GUARDA
É, revolução... Está aqui...
(Continua)
“Sete léguas carregando uma cruz, pela reforma agrária e contra a
exploração do homem pelo homem”
(Entreolham-se sem entender)
ZÉ
Eu bem achei que aquele camarada não era certo da bola
GUARDA
(Continuando a ler)
“Para o vigário da paróquia de Santa Bárbara, é Satanás
disfarçado Quem será afinal Zé do Burro? Um místico ou um
agitador? O povo o olha com admiração e respeito, pelos caminhos
por onde passa com sua cruz, mas o vigário expulsa o do templo
No entanto Zé-do-Burro está disposto a lutar até o fim”. Acho que
o moço não entendeu bem o seu caso
(Olha-o com certa desconfiança)
Ou então fui eu que não entendi
(Dá o jornal a Zé-do-Burro)
Podem ler, mas não joguem fora
(Iniciando a saída)
Quero levar pra casa
(Sai)
ROSA
Zé, não estou gostando disso
ZÉ
Nem eu
ROSA
Não entendi bem o que botaram na gazeta, mas uma coisa me diz
que isso não é bom
ZÉ
(Não esconde o ressentimento que guarda dela)
Bem Maria de Iansan disse que a promessa tinha que ser bem
grande. Com certeza Santa Bárbara achou que não era bastante o
que eu prometi e está cobrando o restante
(Fita Rosa)
Ou está me castigando por eu ter prometido tão pouco
ROSA
Então eu também estou sendo castigada
ZÉ
Ou pode ser que esteja me fazendo passar por tudo isso pra me
experimentar. Pra ver se eu desisto da promessa. Santa Bárbara
esta me tentando e ainda há pouco quase que eu caio
ROSA
Quando?
ZÉ
Quando aquela sujeita disse tudo aquilo. O sangue me subiu na
cabeça e se eu me deixo tentar tinha matado um homem ou uma
mulher... Ia preso... e não podia cumprir a promessa. Pensei
nisso, naquela hora e agüentei tudo calado. Foi uma prova. Tudo
isso é uma provação.
ROSA
(Agarrando-se a uma justificativa para sua própria falta)
Deve ser, sim. É a única explicação pra tudo que aconteceu. Santa
Bárbara me usou pra pôr você à prova.
ZÉ
Mas Santa Bárbara não teria feito isso se não conhecesse você
melhor que eu...
ROSA
(Veemente)
Eu senti, Zé... senti que havia uma vontade mais forte do que a
minha me empurrando pra lá... E você ajudando. Você também é
culpado. Eu não queria ir e você insistia. Não é pra me desculpar,
mas se tudo é obra de Santa Bárbara, o que é que eu podia fazer?
ZÉ
Podia resistir à tentação, como eu tenho resistido.
ROSA
Era diferente. Não era a mim que ela estava pondo à prova. Era a
você. E se ela é santa, se ela pode fazer milagre, pode me obrigar a
fazer o que eu não quero, como obrigou. Pode botar o diabo no
meu corpo, como botou. Mas isso não vai acontecer mais. Acho
até que isso nem aconteceu. Pois se foi uma provação divina...
ZÉ
(Não muito convencido.)
Esse assunto nós vamos resolver depois, na volta.
(Lê o jornal).
Entra Bonitão pela direita e vai diretamente à vendola.
Aproxima-se do Secreta. Traz um jornal embaixo do braço.
BONITÃO
(Em voz baixa, disfarçadamente)
Você veio depressa.
(Para o Galego)
Uma dose.
Galego serve.
SECRETA
(Idem)
Que é que você quer falar comigo? Se é sobre a sua volta à
Polícia...
BONITÃO
(Corta, sorrindo)
Não, nada disso. Nem estou pensando mais em voltar. Estou
muito bem de vida.
SECRETA
Mas tome cuidado. Estão com sua ficha em dia...
BONITÃO
(Ri)
Não acredito. Vocês vivem comendo mosca. Olha aí...
(Indica, com o olhar, Zé-do-Burro)
No meu tempo, esse cabra já estava no xilindró
(Noutro tom)
E vocês me expulsaram...
SECRETA
Quem é ele?
BONITÃO
(Mostrando o jornal)
Tome, leia... Vocês nem lêem gazeta e querem estar em dia.
(O Secreta põe-se a ler o jornal atentamente, dando de vez em
quando, uma mirada para Zé-do-Burro, como a comprovar as
afirmativas. Bonitão atira uma nota sobre o balcão).
SECRETA
Você já conversou com ele?
BONITÃO
Já. O homem é perigoso. Banca o anjo de procissão, mas não é à
toa que o padreco dali de frente fechou a igreja e jurou que ele não
entra.
SECRETA
É, mas a coisa é esquisita.
BONITÃO
Eu, se fosse você, “guardava” ele por uns dias...
SECRETA
Também não pode ser assim. Tenho que investigar, depois
comunicar ao Comissário.
BONITÃO
Qual, vocês não sabem trabalhar. Dá o flagra no homem!
SECRETA
Flagra de quê? Ele não está fazendo nada...
BONITÃO
Como não? Agitação social!
SECRETA
Venha comigo.
BONITÃO
(Iniciando a passagem)
Ele vai lhe contar a história de um burro, mas não vá nessa
conversa.
GALEGO
(Para Mestre Coca)
Polícia... estão querendo prender el hombre!
COCA
Está certo, não. Fazer promessa não é crime.
Zé-do-Burro recebe Bonitão e Secreta com desconfiança.
Rosa mostra certo constrangimento diante de Bonitão. Este
apresenta o Secreta.
BONITÃO
Um amigo. Quer conversar com vocês... quer ajudar.
SECRETA
Olá!
Zé
(Dentro dele, uma revolta de proporções imprevisíveis começa a
crescer)
Ajudar? todo o mundo quer ajudar...
(Arrebata o jornal das mãos de Rosa e o faz em pedaços)
ROSA
(Assustada)
Não faça isso, homem! É do Guarda! Ele pediu pra guardar!
ZÉ
O Guarda também quer ajudar.
(Repete como uma obsessão)
Todos querem ajudar...
(Seu olhar, que começa a ser agora um olhar de fera acuada, cai
sobre Bonitão)
Todos...
SECRETA
O senhor sabe que suas idéias são muito perigosas?
ZÉ
Perigosas?
SECRETA
O senhor não devia dizer isso no jornal. E muito menos aqui, em
praça pública. Porque isso pode lhe dar muita aporrinhação.
ZÉ
Mais do que já tive?
SECRETA
Por muito menos, tenho visto muita gente ir parar no xadrez.
ROSA
Xadrez?
SECRETA
Estou avisando como amigo.
ZÉ
Amigo. Já vi que estou cercado de amigos. É amigo por todo lado...
Cada qual querendo ajudar mais do que o outro.
SECRETA
O senhor é um revoltado.
ZÉ
Não era, não. Mas estou ficando.
SECRETA
É por isso que está aqui desde esta madrugada?
ZÉ
É.
(Inflamando-se)
E daqui não saio enquanto não fizer com que todo mundo me
entenda! Todo mundo!
SECRETA
Como pretende fazer isso?
ZÉ
Como... sei lá... mas tem de haver um jeito... tem de haver um
jeito...
(Desesperado)
A vontade que eu tenho é de jogar uma bomba...
(Inicia um gesto, como se atirasse uma bomba contra a igreja,
mas o braço se imobiliza no ar, ele percebe a heresia que ia
proferir, deixa o braço cair e ergue os olhos para o céu)
Que Deus me perdoe!
(Secreta e Bonitão trocam olhares significativos. Zé-do-Burro
avança dois ou três passos em direção à igreja, isola-se do grupo e
grita a plenos pulmões)
Padre! Padre!
(Dedé desce a ladeira e fica assistindo à cena, curioso)
Padre, eu andei sete léguas pra vir até aqui! Deus é testemunha!
Ainda não comi hoje... e não vou comer até que abra a porta! Um
dia, dois... um mês... vou morrer de fome na porta da sua igreja,
padre!
Galego deixa a vendola e vem para o meio da praça, no
momento em que surgem também na ladeira dois tocadores
de berimbau, de instrumento em punho. Colocam-se ao
lado de Mestre Coca e ficam apreciando.
ZÉ
(Gritando, alucinadamente)
Padre, é preciso que me ouça, padre!
Abre-se de súbito a porta da igreja e entra o Padre. O
Sacristão atrás dele, amedrontado. Grande silêncio. O
Padre avança até o começo da escada.
PADRE
Que pretende com essa gritaria? Desrespeitar esta casa, que é a
casa de Deus?
ZÉ
Não, Padre, lembrar somente que ainda estou aqui com a minha
cruz.
PADRE
Estou vendo. E essa insistência na heresia mostra o quanto está
afastado da igreja.
ZÉ
Está bem, Padre. Se for assim, Deus vai me castigar. E o senhor
não tem culpa.
PADRE
Tenho, sim. Sou um sacerdote. Devo zelar pela glória do Senhor e
pela felicidade dos homens.
ZÉ
Mas o senhor está me fazendo tão infeliz, padre!
PADRE
(Sinceramente convicto)
Não! Estou defendendo a sua felicidade, impedindo que se perca
nas trevas da bruxaria.
ZÉ
Padre, eu não tenho parte com o Diabo, tenho com Santa Bárbara.
PADRE
(Agora para toda a praça)
Estive o dia todo estudando este caso. Consultei livros, textos
sagrados. Naquele burro está a explicação de tudo. É Satanás! Só
mesmo Satanás podia levar alguém a ridicularizar o sacrifício de
Jesus.
ROSA
Não, Padre, não!
PADRE
Por que não?
ROSA
Porque eu conheço ele. É um bom homem. Até hoje só fez o bem.
PADRE
Lúcifer também foi anjo.
ROSA
É até bom demais. Nunca fez mal a ninguém, nem mesmo a um
passarinho. É capaz de repartir o que é dele com os outros. De
deixar de comer até... pra dar de comer a um burro. É um homem
bom, isso eu garanto.
PADRE
Como pode garantir?
ROSA
Sou mulher dele. Vivo com ele. Durmo na mesma cama, como na
mesma mesa.
PADRE
Isso não quer dizer nada...
ROSA
(Com mais veemência)
Como é que não?!
Entra o Guarda da direita e se detém no meio da praça.
PADRE
Lúcifer iludiu o Senhor até o último momento!
(Leva o dedo em riste)
Mas eu conheço seus adeptos! Mesmo quando se disfarçam sob a
pele do cordeiro! Mesmo quando se escondem atrás da cruz de
Cristo! A mesma cruz que querem destruir! Mas não destruirão!
Não destruirão!
Neste momento, entra Monsenhor. O Padre está no auge de
sua cólera. Ao ver Monsenhor, seu braço se imobiliza no ar,
como ante uma aparição sobrenatural.
PADRE
Monsenhor!
SACRISTÃO
Monsenhor Otaviano!
PADRE
(Grita para a praça)
Deixem passar Monsenhor!
Todos abrem passagem e se curvam respeitosamente.
Monsenhor avança para a igreja. Ao passar por Zé-do-
Burro, este lhe cai aos pés e beija-lhe a mão.
MONSENHOR
(Paternal, magnânimo)
Já sei. Estou tratando do seu caso.
(Entra na igreja, seguido dos seminaristas, do Padre e do
Sacristão. Fecha-se a porta).
GUARDA
É Monsenhor Otaviano! Deve ter vindo a mando do Arcebispo!
ROSA
E o Padre ficou apavorado quando viu ele, reparou?
DEDÉ
Com certeza o Arcebispo mandou puxar as orelhas do Padre.
MINHA TIA
Bem feito!
GALEGO
Se deixam el hombre entrar, prejudicam nuestro negócio.
ZÉ
(Com esperança)
Será?... será que o Arcebispo chegou a saber?!
GUARDA
Ora, a cidade inteira já sabe! O rádio já deu!
COCA
Não se fala noutra coisa, da Cidade Baixa até a Cidade Alta!
ZÉ
E ele vir até aqui por causa disso...
ROSA
É porque veio trazer alguma ordem. E ordem do Arcebispo!
DEDÉ
Mandou o Padre deixar de ser besta.
COCA
Mandou abrir a porta!
MINHA TIA
Eu disse: Iansan tem força! Agora ele vai entrar! Vai entrar!
ZÉ
Eu sabia que Santa Bárbara não ia me desamparar!
Abre-se a porta da igreja. Surgem Monsenhor e Padre,
seguidos do Sacristão. Há um grande silêncio de
expectativa.
MONSENHOR
Venho aqui a pedido de Monsenhor Arcebispo. S. Excia. está
muito preocupado com o vulto que está tomando este incidente e
incumbiu-me, pessoalmente, de resolver a questão. A fim de dar
uma prova da tolerância da igreja para com aqueles que se
desviam dos cânones sagrados...
ZÉ
(Interrompe)
Padre, eu sou católico. Não entendo muita coisa do que dizem,
mas queria que o senhor entendesse que eu sou católico. Pode ser
que eu tenha errado, mas sou católico.
MONSENHOR
Pois bem. Vamos lhe dar uma oportunidade. Se é católico, renegue
todos os atos que praticou por inspiração do Diabo e volte ao seio
da Santa Madre Igreja.
ZÉ
(Sem entender)
Como, Padre?
MONSENHOR
Abjure a promessa que fez, reconheça que foi feita ao Demônio,
atire fora essa cruz e venha, sozinho, pedir perdão a Deus.
ZÉ
(Cai num terrível conflito de consciência)
O senhor acha mesmo que eu devia fazer isso?!...
MONSENHOR
É sua única maneira de salvar-se. A igreja católica concede a nós,
sacerdotes, o direito de trocar uma promessa por outra.
ROSA
(Incitando-o a ceder)
Zé... talvez fosse melhor...
ZÉ
(Angustiado)
Mas Rosa... se eu faço isso, estou faltando à minha promessa...
seja Iansan, seja Santa Bárbara... estou faltando...
MONSENHOR
Com a autoridade de que estou investido, eu o liberto dessa
promessa, já disse. Venha fazer outra...
PADRE
Monsenhor está dando uma prova de tolerância cristã. Resta
agora você escolher entre a tolerância da Igreja e a sua própria
intransigência.
ZÉ
(Pausa)
O senhor me liberta... mas não foi ao senhor que eu fiz a
promessa, foi a Santa Bárbara. E quem me garante que como
castigo, quando eu voltar pra minha roça não vou encontrar meu
burro morto.
MONSENHOR
Decida! Renega ou não renega?
MINHA TIA
Êparrei! Maleme pra ele, minha mãe!
COCA
Maleme!
ZÉ
Não! Não posso fazer isso! Não posso arriscar a vida do meu burro!
PADRE
Então é porque você acredita mais na força do demônio do que na
força de Deus! É porque tudo que fez foi mesmo por inspiração do
diabo!
MONSENHOR
Nada mais posso fazer então.
(Atravessa a praça e sai)
ZÉ
(Corre na direção de Monsenhor)
Monsenhor! Me deixe explicar!
(No auge do desespero)
Me deixe explicar!
PADRE
Que ninguém agora nos acuse de intolerantes. E que todos se
lembrem das palavras de Jesus: “Porque surgirão falsos cristos e
falsos profetas, e farão tão grandes sinais e prodígios, que, se
possível fora, enganariam a muitos”.
ZÉ
Padre, eu não quero enganar ninguém.
PADRE
Enganaria a muitos, sim. E muitos o seguiriam ao sair daqui.
ZÉ
Eu não quero que ninguém me siga!
PADRE
Mas seguiriam, como já o seguiram pelas estradas, sem saber que
seguiam a Satanás!
ZÉ
(Subitamente fora de si, corre para a cruz, levanta-a nos braços
como um aríete e grita)
Padre! Por Santa Bárbara ou por Satanás, vou colocar esta cruz
dentro da igreja, custe o que custar!
PADRE
(Ante a decisão que vê estampada no rosto de Zé-do-Burro, recua
amedrontado)
Eis a prova: um católico não ameaça invadir a casa de Deus!
Guarda! Prenda esse homem!
(E ante a investida de Zé-do-Burro, que caminha para a igreja,
corre seguido do Sacristão e cerra a porta no momento mesmo em
que Zé sobe os degraus. Este, revoltado e vencido, atira a cruz
contra a porta. A cruz tomba, estrondosamente, sobre a escada.
Zé-do-Burro senta-se num dos degraus e esconde o rosto entre as
mãos).
COCA
(Para os tocadores de berimbau)
Fiquem aqui. Vou chamar o resto do pessoal...
(Sobe a ladeira).
BONITÃO
(Para o Secreta)
Que está esperando?... Não está convencido ainda?...
SECRETA
(Faz um sinal afirmativo com a cabeça)
Espere...
(Sai pela direita)
ROSA
(Que percebeu a troca de palavras entre o Secreta e Bonitão)
Espere o quê? Quem é ele?
BONITÃO
Um secreta.
ROSA
(Começando a compreender)
Polícia! Você?! Você denunciou...?!
BONITÃO
Daqui a pouco, você vai ficar livre desse idiota.
ROSA
(Horroriza-se ante a idéia da traição)
Você não devia ter feito isso! Não devia!
BONITÃO
É pro seu bem. Pro nosso bem.
ROSA
(Angustiada pelo conflito de consciência que se apossa dela)
Não... assim, não! Eu não queria assim!...
BONITÃO
Agora está feito.
Rosa se debate em seu conflito: de um lado, sua noção de
lealdade gerando um repúdio natural à delação. Do outro,
todos os seus recalques sexuais, sua ânsia de libertação, de
realização mesmo, como mulher, que Bonitão veio
despertar. Enquanto isso, Zé-do-Burro, sentado nos
degraus da igreja, sofre uma crise nervosa. Soluça
convulsivamente. Os tocadores de berimbau fazem gemer a
corda de seus instrumentos.
E lentamente, enquanto as luzes de cena se apagam,
CAI O PANO.
Terceiro Ato
Entardecer. A praça está cheia de gente. Na escadaria da
igreja, Zé-do-Burro e Rosa. Na vendola, o Galego. À frente da
vendola, formou-se uma roda de capoeira. Dois tocadores de
berimbau, um de pandeiro e um de reco-reco, sentados num
banco, e os “camaradas”, formando um círculo, ao centro do qual,
de cócoras, diante dos músicos, estão Mestre Coca e Manoelzinho
Sua-Mãe. Dedé Cospe-Rima está entre os componentes da roda e
Minha Tia não se encontra em cena. Choram os berimbaus e
Rosa, dominada pela curiosidade, aproxima-se da roda.
MESTRE DO CORO
(Canta):
Sinhazinha que vende aí?
Vendo arroz do Maranhão
Meu sinhô mando vende
Na terra do Salomão.
Aruandê
Camarado.
CORO
É, É.
Aruandê
Camarado
MESTRE
Galo canto
CORO
Ê, ê.
Aruandê
Camarado
MESTRE
Cocorocó
CORO
Ê, ê
Aruandê
Camarado
MESTRE
Goma de goma
CORO
Ê, ê
Goma de goma
Camarado.
MESTRE
Ferro de mata
CORO
Ê, ê
Ferro de mata Camarado
MESTRE
É faca de ponta
CORO
Ê, ê
Faca de ponta
Camarado
MESTRE
Vamos embora.
CORO
Ê, ê
Vamos embora
Camarado
MESTRE
Pro mundo afora
CORO
Ê, ê
Pro mundo afora
Camarado
MESTRE
Dá volta ao mundo
CORO
Ê, ê
Volta do mundo
Camarado
E tem início o jogo. Mestre Coca e Manoelzinho Sua-Mãe
percorrem a roda virando o corpo sobre as mãos e começam
a luta-dança, cuja coreografia é ditada pelo toque do
berimbau.
DEDÉ
(Grita)
Quero ver um “rabo-d’arraia”, Mestre Coca!
UMA VOZ
Manoelzinho Sua-Mãe é porreta no aú!
OUTRA VOZ
Eu queria vê isso à vera.
MESTRE DO CORO
Quem te ensino essa mandinga?
Foi o nego de sinhá.
O nego custo dinhero,
dinhero custo ganha, Camarado.
CORO
Cai, cai, Catarina,
sarta de má, vem vê Dalina.
MESTRE DO CORO
Amanhã é dia santo,
dia de corpo de Deus
Quem tem roupa vai na missa,
quem não tem faz como eu.
CORO
Cai, cai, Catarina,
sarta de má, vem vê Dalina.
MESTRE DO CORO
Minino, quem foi teu mestre?
quem te ensino a joga?
- Só discip’o que aprendo meu mestre
foi Mangangá,
na roda que ele esteve,
outro mestre lá não há Camarado.
CORO
Cai, cai, Catarina,
sarta de má, vem vê Dalina.
Rosa, apreensiva, nervosa, desinteressa-se da capoeira: vai
até a ladeira, olha para o alto, ansiosamente, como se
esperasse alguém, depois volta pra junto do marido. Muda
o ritmo do jogo.
MESTRE DO CORO
Panha a laranja no chão, tico-tico
ai, se meu amo fô s’imbora eu não fico
CORO
Panha a laranja no chão, tico-tico
MESTRE DO CORO
Minha camisa é de renda de bico
CORO
Panha a laranja no chão, tico-tico
MESTRE DO CORO
Ai, se meu amo fô s’imbora eu não fico
E novamente muda o jogo, agora rápido, com os dois
jogadores empenhando-se em golpes de espantosa
agilidade, no ritmo cada vez mais acelerado da música.
MESTRE DO CORO
Santa Bárbara que relampuê
Santa Bárbara que relampuá
CORO
Santa Bárbara que relampuê
Santa Bárbara que relampuá
MESTRE DO CORO
Vou pidi a Santa Bárbara.
Pra ela me ajudá
CORO
Santa Bárbara que relampuê
Santa Bárbara que relampuá
Esse estribilho é repetido várias vezes em ritmo cada vez
mais rápido, até que Minha Tia surge no alto da ladeira e
marca, num canto sonoro.
MINHA TIA
Óia, o ca-ru-ru!
Cessa de repente o canto e o acompanhamento. Os
jogadores param de jogar.
MINHA TIA
É o caruru de Santa Bárbara, minha gente!
A roda de capoeira se desfaz, alegremente. Todos cercam
Minha Tia, que vai instalar seu tabuleiro no local
costumeiro, ajudada pelos capoeiristas. Apenas os músicos
continuam nos seus bancos e Mestre Coca vai à vendola.
Rosa também permanece junto do marido, demonstrando
um nervosismo, uma ansiedade crescente.
A capoeira não deve durar mais que dois minutos, a fim de
não quebrar a continuidade dramática da peça.
DEDÉ
O primeiro caruru é meu, Minha Tia!
Minha Tia enche um prato e coloca-o de lado, no chão.
DEDÉ
Pra quem é esse?
MINHA TIA
É pra Santa.
(Enche outro prato, dá a Dedé)
Agora sim, é seu.
Dedé recebe o prato e dirige-se à vendola.
COCA
(Tira do bolso uma nota e coloca-a sobre o balcão)
Aposto cem.
GALEGO
(Coloca uma nota sobre a de Mestre Coca)
Casado.
COCA
Fica na mão de quem?
(Dedé vem se aproximando)
De Dedé Cospe-Rima.
DEDÉ
Também quero entrar nessa aposta.
COCA
O Galego diz que o padreco não deixa o homem entrar. Eu digo
que vai acabar entrando, hoje mesmo, com cruz e tudo.
GALEGO
Entra nada. Yo conheço esse padre. Moça com vestido decotado
no entra nesta igreja. Yo mismo já vi ele parar la missa até que
uma turista americana, de calças compridas, se retirasse...
DEDÉ
E eu digo que o homem entra, mas não hoje, amanhã. O Padre
quer humilhar ele primeiro, mas depois vai ficar com medo dele ir
se queixar pra Santa Bárbara e vai abrir a porta.
GALEGO
Pero usteds no entenderam la cosa. Ele no fez promessa pra Santa
Bárbara. Fez para Iansan, num candomblé.
COCA
E que tem isso?
GALEGO
Tem que candomblé és candomblé e igreja és igreja.
COCA
E a Santa não é a mesma?
DEDÉ
Não, o Galego tem razão. A santa pode ser a mesma, mas o Padre
tem medo da concorrência e quer defender o seu negócio.
COCA
Mas não adianta. Iansan tem força. O homem entra.
GALEGO
Nem Iansan nem todos os orixás do candomblé fazem ele entrar.
DEDÉ
Entra, sim. Amanhã ele entra.
(Num tom de mistério)
E não se admirem se for eu que fizer ele entrar...
GALEGO
Usted?
DEDÉ
Sim, eu, Dedé Cospe-Rima.
COCA
E como?
DEDÉ
Ah, isso é segredo profissional...
COCA
Então, se ele entrar hoje, ganho eu. Se entrar amanhã, ganha
você. Se não entrar, ganha o Galego.
DEDÉ
Fechado.
COCA
Bota cem pratas.
(Estende a mão)
DEDÉ
(Segura o prato com u’a mão, com a outra remexe os bolsos)
Não tenho ainda não, mas de noite eu lhe dou.
COCA
(Desconfiado)
Vê, lá, hem?
(Dá o dinheiro ao Galego)
Por via das dúvidas, fica com o dinheiro, Galego.
MANOELZINHO
(Aproxima-se de Mestre Coca)
Tu tá um bicho na capoeira, Mestre Coca.
COCA
Você é quem diz.
MANOELZINHO
Tinha ido lá pro mercado, pensando que ia ser lá a vadiação. Lá
me disseram que tinha vindo todo mundo pra cá...
COCA
Por causa do homem da cruz.
MANOELZINHO
Diz que ele quer cumprir obrigação pra Iansan...
UM CAPOEIRA
Quer botar essa cruz lá dentro da igreja.
OUTRO CAPOEIRA
E já quiseram até prender ele.
MANOELZINHO
Só por causa disso?
UM CAPOEIRA
Então.
MANOELZINHO
Não pode!
COCA
Não pode e não vão fazer. O homem não fez nada.
DEDÉ
(Aproxima-se de Zé-do-Burro)
Amanhã... amanhã você entra, meu camarada. Lhe garanto. Vou
hoje pra casa escrever a história desse padre. Sei umas coisas
dele... e se precisar a gente inventa. Amanhã vou chegar aqui com
uma tabuleta: “Aguardem! O padre que fechou a casa de Deus”!
Vai ver se ele abre ou não abre a porta. Ou abre ou vai ter que me
passar uma gaita pra não publicar os versos.
(Pisca o olho e afasta-se).
MINHA TIA
(Para Rosa)
Não quer também, Iaiá?
ROSA
Não.
MINHA TIA
Caruru de Santa Bárbara. Antigamente a gente fazia isso e era de
graça. Hoje, com a vida do jeito que está, a gente tem mesmo é
que cobrar.
GALEGO
(Atravessa a praça com um prato de sanduíches na mão e vai a
Zé-do-Burro)
Pero yo no cobro nada.
(Oferece)
Oferta da casa.
ZÉ
Pra mim?
GALEGO
Si, para usted. Cachorro-quente. Después trarê un cafezito.
ZÉ
Não, obrigado.
GALEGO
Pode aceitar sin constrangimento. E podemos até hacer um
negócio. Se usted promete no arredar pé de cá, yo me comprometo
a fornecer comida e bebida gratuitamente para los dos.
ZÉ
Não, não tenho fome.
GALEGO
(Muito preocupado)
Pero, asi usted no poderá resistir!
ZÉ
Não importa.
GALEGO
(Oferece a Rosa)
A senhora não quer?...
ROSA
Não estou com vontade.
GALEGO
(Encolhe os ombros, conformado)
Bien...
(Volta à venda)
ZÉ
(Ele observa a intranqüilidade indisfarçável de Rosa, que a todo o
momento olha assustada para a ladeira ou para a rua, esperando
ver surgir a polícia)
Que é que você tem?
ROSA
Nada. Queria era ir embora.
ZÉ
Sozinha?
ROSA
Não, com você.
ZÉ
(Com intenção)
Pensei que estivesse farta de mim.
ROSA
(Nervosamente)
Estou farta é dessa palhaçada. Estamos aqui bancando os bobos.
Toda essa gente está rindo de nós, Zé! Quem não está rindo está
querendo se aproveitar! É uma gente má, que só pensa em fazer
mal.
(Sacode-o pelos ombros, como para chamá-lo à realidade)
Largue a cruz onde está, Zé, e vamos embora pra nossa roça,
antes que seja tarde demais!
ZÉ
De que é que você está com medo?
ROSA
De tudo.
ZÉ
Não é de você mesma?
ROSA
Também! Mas já não sou eu quem corre perigo, é você.
ZÉ
Que perigo?
ROSA
Você não vê? Não sente? Não respira? Está no ar!... E cada minuto
que passa, aumenta o perigo.
(Olha para todos os lados, como fera acuada)
Esta praça está ficando cada vez menor... como se eles estivessem
fechando todas as saídas.
(Volta-se para ele, com veemência)
Vamos embora Zé, enquanto é tempo!
ZÉ
(Desconfiado)
Que deu em você assim de repente?
ROSA
Não é de repente, desde que chegamos que eu estou querendo
voltar. Você foi que teimou em ficar. Por mim, você tinha largado
aí essa cruz e voltado no mesmo pé.
(Com intenção)
A esta hora, já estava na estrada longe daqui, e nada tinha
acontecido...
ZÉ
Você acha que depois de andar sete léguas eu ia voltar sem
cumprir a promessa?
ROSA
Você já pagou essa promessa, Zé. Não é sua culpa se há gente
sempre disposta a ver demônios em toda a parte, até mesmo
naqueles que estão do seu lado e que odeiam também o demônio.
É gente que vai acabar enxergando na própria sombra a figura do
diabo.
Entreabre-se a porta da igreja e surge na fresta a cabeça do
Sacristão, que, ao ver Zé-do-Burro, torna a entrar e fechar
a porta.
ROSA
Está vendo? O Padre mandou ver se você ainda estava aqui; não
vai abrir a porta enquanto a gente não for embora. Vamos, Zé!
ZÉ
(Reage com irritação, procurando combater em si mesmo o desejo
de ir)
Não, já disse que não. Só arredo pé daqui depois de levar a cruz lá
dentro da igreja.
Secreta entra na direita e atravessa a praça em direção à
vendola, observando dissimuladamente, Zé-do-Burro. Ao
vê-lo, Rosa não esconde a sua inquietação. Acompanha-o
com um olhar amedrontado até a vendola
SECRETA
(Para o Galego)
Uma meladinha.
Galego serve a cachaça com mel.
ZÉ
(Notando a apreensão de Rosa)
Que há?
ROSA
Ele não é nosso amigo.
ZÉ
E que tem isso?
ROSA
Ouvi dizer que é da polícia.
ZÉ
Não sou nenhum criminoso, não fiz mal a ninguém.
ROSA
Por isso mesmo que eu tenho medo, porque você não sabe fazer
mal... e eles sabem!
Mestre Coca e Manoelzinho vão à vendola, encostam-se no
balcão junto do Secreta.
GALEGO
Que van hacer com o homem?
SECRETA
Deixe que eu cuido disso.
COCA
Mas ele não fez nada...
SECRETA
(Lança a Mestre Coca um olhar de intimidação)
E é melhor não se meterem onde não são chamados.
Secreta bebe a cachaça de um trago, coloca uma moeda
sobre o balcão e volta a atravessar a cena, com ar
misterioso, saindo pela rua da direita. Mestre Coca e
Manoelzinho trocam um olhar de solidariedade.
ROSA
Ele só veio ver se a gente ainda estava aqui... vamos aproveitar,
antes que ele volte.
ZÉ
Deixe de bobagem. Não sou menino que quando brinca com fogo
mija na cama.
(Põe-se a picar fumo com uma faquinha).
MARLI
(Entra da direita, atravessa a cena, lentamente, num andar
provocante).
DEDÉ
(Referindo-se a Marli)
Boa moça... Só que... casou com a humanidade...
Mestre Coca ri
MARLI
(Na vendola, para o Galego)
Viu Bonitão?
GALEGO
Já esteve aqui várias vezes, hoy.
MARLI
(Referindo-se a Rosa)
Eu sei... e sei também o motivo.
GALEGO
Festa de Iansan?
MARLI
Não é bem Iansan, é outro orixá.
ROSA
(Para Zé-do-Burro)
Vou ali, preciso falar com aquela mulher.
ZÉ
Que é que você ainda tem que falar com ela? Não lhe basta a
vergonha que ela lhe fez passar?
ROSA
Mas eu preciso, Zé! Eu preciso!
(Vai à vendola. Zé-do-Burro a segue com um olhar de profunda
desilusão)
Preciso falar com você.
MARLI
(Hostil, estranhando)
Comigo?
ROSA
Ou melhor, com ele, Bonitão. Onde está ele?
MARLI
Sujeita sem vergonha. Dá em cima do meu homem e ainda tem o
descaramento de vir me pedir pra dizer onde ele está! Não lhe
basta o seu? Precisa do meu pra se contentar?
ROSA
Não preciso do seu homem pra nada. Quero só falar com ele, pra
evitar uma desgraça.
MARLI
(Ameaçadora)
Se você quer mesmo evitar uma desgraça, o melhor é deixar ele
em paz.
ROSA
Mas eu tenho que falar com ele. Juro que é assunto sério.
MARLI
Você pode enganar o trouxa do seu marido. Mas a mim, não!
ROSA
Onde ele mora?
MARLI
Mora comigo.
ROSA
Mentira. Eu sei que ele mora num hotel.
MARLI
Pois vá lá atrás dele, pra ver o que lhe acontece.
ROSA
(Reagindo)
Pare com isso que eu não tenho medo de você.
MARLI
Nem eu de você.
As duas se olham desafiadoramente a ponto de quase se
atracarem. Zé-do-Burro, que ouviu a discussão, aproximase.
ZÉ
Rosa, você perdeu a cabeça? Não sabe qual é o seu lugar?
Discutindo na rua com uma...
(completa a frase com um gesto de desprezo).
MARLI
Com uma o quê, seu beato pamonha? Carola duma figa! A mulher
dando em cima do homem da gente e ele agarrado aí com essa
cruz! Isso também faz parte da promessa?
ROSA
Cale essa boca! Não se meta com ele. Ele não tem nada com isso!
MARLI
Não tem! Não é seu marido?
ROSA
É, mas não se rebaixa a discutir com você.
MARLI
(Mede-o de cima a baixo, com mais desprezo ainda)
Corno manso!
(Dá-lhe as costas, bruscamente e sobe a ladeira).
Galego solta uma gargalhada, que corta de súbito, ante o
olhar ameaçador de Zé-do-Burro. Este, num gesto
instintivo, ergue a pequena faca de picar fumo.
ROSA
Zé!
GALEGO
(Intimidado)
Perdon... no se puede dar confiança a essas mujeres....
ZÉ
(Para Rosa, num tom que revela sua desilusão, sua revolta e sua
decisão de não mais deixar-se iludir)
Esta noite a gente vai embora.
ROSA
E por que não agora?
ZÉ
Vamos deixar passar o dia de Santa Bárbara
ROSA
De noite, talvez seja tarde...
ZÉ
Tarde pra quê?
ROSA
Pra voltar!
ZÉ
O que você ainda queria falar com aquele sujeito?
ROSA
Pedir pra ele deixar você em paz.
ZÉ
A mim?
ROSA
Ele denunciou você à polícia.
ZÉ
Mas eu sou um homem de bem. Nunca tive nada com a polícia.
ROSA
Eu sei. Mas eles torcem as coisas. Confundem tudo.
(Angustiada)
Zé! Ouça o que eu digo. A gente devia ganhar a estrada agora
mesmo. Neste minuto.
O Repórter e o Fotógrafo entram pela direita, a tempo de
ouvirem a última “fala” de Rosa.
REPÓRTER
Eh, que é isso? Já estão pensando em ir embora?!
ZÉ
(Hostil)
Vou embora quando quiser, não tenho que dar conta disso a
ninguém.
(Dá as costas ao Repórter, ostensivamente e volta para junto da
cruz, na escadaria da igreja. O Fotógrafo conversa qualquer coisa
com os componentes da roda de capoeira e sai seguido de Mestre
Coca e mais três ou quatro).
REPÓRTER
Vocês não estão falando sério, não?... Sim, porque eu espero que
vocês cumpram o que prometeram. Meu jornal está cumprindo. Já
tomei todas as providências para que sua estada aqui até
segunda-feira seja a mais agradável possível.
ROSA
Como?...
Neste instante, entram os capoeiristas conduzindo primeiro
uma tenda de pano já armada e em seguida um colchão de
molas. Na tenda, há um letreiro: Oferta da Casa da Lona.
No colchão há outro: Gentileza da Loja Sonho Azul. Com
enorme espanto de Zé-do-Burro e Rosa, eles colocam a
barraca no meio da praça e o colchão dentro da barraca.
REPÓRTER
Fomos aos nossos clientes e eles se dispuseram prontamente a
colaborar conosco.
Entra o Fotógrafo trazendo uma mesinha e um aparelho de
rádio de pilha, que coloca também na barraca.
ZÉ
(Surpreso)
O senhor trouxe essas coisas... pra nós?
REPÓRTER
Bem julgamos que um pouco de conforto durante esses dias não
reduzirá também o valor de sua promessa. Além disso, segundafeira,
depois da entrada triunfal na igreja, o senhor percorrerá a
cidade em carro aberto, com batedores, num percurso que irá
daqui até a redação do nosso jornal. De lá irá ao Palácio do
Governo, onde será recebido pelo Governador.
(Zé vai dizer qualquer coisa e ele o interrompe)
Já sei: vai dizer que se o vigário de Santa Bárbara não o deixar
entrar em sua igreja, o Governador vai também lhe bater com a
porta na cara. Não se preocupe. Já estamos mexendo os
pausinhos. E se o senhor puder dizer uma palavrinha a favor do
candidato oficial nas próximas eleições, estará tudo arranjado.
ROSA
Por favor, leve tudo isso daqui. Nós estamos de partida.
REPÓRTER
De partida? Não, não pode ser... isso seria um desastre para
mim... O jornal já fez despesas... já compramos foguetes,
contratamos uma banda de música para a volta...
ROSA
A volta vai ser hoje mesmo.
REPÓRTER
Hoje?! Mas não dá tempo!... Não está nada preparado... O que é
que a senhora pensa? Que é assim tão simples organizar uma
promoção de venda? É muito fácil pegar uma cruz jogar nas
costas e andar sete léguas. Mas um jornal é uma coisa muito
complexa. Mobilizar todos os departamentos para dar cobertura...
e depois, eu já lhe disse, amanhã é domingo, não tem jornal!
ROSA
(Irritando-se)
E qual é o meu?! Que se dane o seu jornal! Eu quero é ir embora
daqui! O Zé tem razão, vocês todos querem ajudar, ajudar...
ajudam mas é a desgraçar a vida da gente.
REPÓRTER
Está precisando de alguma ajuda... particular?
ROSA
Estou. A Polícia anda rondando a praça.
REPÓRTER
A Polícia?
ROSA
Um secreta. Estão querendo levar ele preso.
REPÓRTER
Por quê?
ROSA
(Pensa um pouco)
Talvez porque ele é bom demais... E o resto é gente safada.
REPÓRTER
Hum... bem me pareceu que por trás dessa história do burro, da
promessa, havia qualquer coisa... uma intenção oculta e um
objetivo político. A polícia, naturalmente, percebeu também...
ROSA
Mas ele não tem nenhuma intenção, a não ser a de pagar a
promessa!
REPÓRTER
(Sorri, descrente)
É claro que a senhora não vai dizer. Nem ele também Mas podem
contar comigo e com o meu jornal. Se ele for preso, daremos toda
a cobertura. Abriremos manchetes na primeira página. Será uma
maravilha para ele!
ROSA
Maravilha! Maravilha ser preso?!
REPÓRTER
Todo líder precisa ser preso pelo menos uma vez!
ROSA
Líder... eu acho que o senhor é maluco. O senhor, esse padre, a
polícia, todos. E eu também, se não me cuidar, vou acabar
ficando.
(Olha, ansiosamente, para o alto da ladeira)
REPÓRTER
(Chama de parte o Fotógrafo)
Prepare-se, daqui a pouco é capaz de haver um bafafá...
Rosa, angustiada, volta para junto do marido.
ROSA
Desista, Zé. Desista.
ZÉ
Por que você não senta aqui e espera até a hora de ir embora?
ROSA
(Senta-se num degrau)
É, o jeito é esperar...
DEDÉ
(Vai a eles com seus folhetos)
E enquanto espera, deve aproveitar para melhorar sua cultura. O
“ABC da Mulata Esmeralda”, modéstia à parte, é uma verdadeira
jóia da literatura brasileira. Por 10 Cruzeiros apenas, o senhor
poderá ler os mais inspirados versos que uma mulata jamais
inspirou. Zé-do-Burro balança negativamente a cabeça. Dedé vai a
Minha Tia.
DEDÉ
Poesia está muito por baixo, Minha Tia. Quem está por cima é o
caruru.
(Aproxima-se da roda de capoeira. Zé-do-Burro sobe um ou dois
degraus, fita, revoltado, a porta cerrada)
MINHA TIA
(Para Zé-do-Burro)
Não desanime, moço. Hoje é dia de Iansan, mulher de Xangô,
Orixá dos raios e das tempestades. Mais nos terreiros, ela está
descendo no corpo dos seus cavalos. Vai falar com ela moço, vai
pedir a proteção de Iansan, que tudo quanto é porta há de se
abrir!
(Ouvem-se trovões mais fortes que da vez anterior)
Óia!...
(Aponta para o céu)
Iansan está falando!...
(Abaixa-se, toca o chão com a ponta dos dedos, depois a testa e
saúda Iansan)
Eparrei, minha mãe!
Neste momento, surge Bonitão na ladeira. Rosa levanta-se,
movida por uma mola. Zé-do-Burro, com os olhos pregados
na porta da igreja, não o vê Não vê que os olhares de Rosa e
Bonitão se cruzam de um extremo a outro da praça. É que
ele, da ladeira, faz para ela um gesto, convidando-a a
acompanhá-lo. Rosa hesita, presa de tremendo conflito.
Olha para Zé-do-Burro, para Bonitão. Este a espera, certo
de que ela acabará por ir ao seu encontro. Minha Tia,
Galego e Dedé percebem o que se passa e aguardam
atentamente. Vendo que ela não se decide, Bonitão dá de
ombros, sorri e acena num gesto curto de despedida. Inicia
a subida da ladeira, mas pára depois de dar dois ou três
passos, fora do ângulo visual de Rosa e Zé-do-Burro. Ela,
como que atraída por um ímã, inicia o movimento para
segui-lo, quando Zé-do-Burro volta-se.
ZÉ
Aonde vai, Rosa?
ROSA
(Detém-se)
Vou ali, já volto.
ZÉ
Ali aonde?
ROSA
No hotel onde dormi. Lembrei agora que esqueci lá o meu lenço.
(Avança mais na direção da ladeira)
ZÉ
Rosa!
ROSA
(Pára, já na altura da ladeira, vê Bonitão à sua espera)
Que é?
ZÉ
(Num apelo e numa advertência que é quase uma súplica)
Deixe esse lenço pra lá!
ROSA
(Hesita ainda um pouco)
Não posso, Zé. Eu preciso dele!
ZÉ
Compro outro pra você, Rosa!
ROSA
Pra quê, Zé, gastar dinheiro à toa... é daquele que eu gosto!
(Sobe a ladeira)
Bonitão passa o braço pela cintura dela e os dois sobem a
ladeira. Galego e Dedé Cospe-Rima trocam olhares
significativos.
DEDÉ
(Canta)
Quem corta e prepara o pau,
quem cava e faz a gamela,
toma a si todo o trabalho
e depois fica sem ela...
O sino da igreja começa a tocar as Ave-Marias. A Beata
surge no alto da ladeira, apressada. Ao passar pela roda de
capoeira que novamente se anima, tem um ar de repulsa e
indignação.
BEATA
Falta de respeito! Bem em frente da igreja. Este mundo está
perdido!...
MINHA TIA
(Oferece)
Caruru, Iaiá?
BEATA
(Pára junto a ela)
Quê?
MINHA TIA
Caruru de Iansan...
BEATA
(Como se ouvisse o nome do diabo)
Iansan?! E que é que eu tenho com dona Iansan? Sou católica
apostólica romana, não acredito em bruxarias!
MINHA TIA
Adiscurpe, Iaiá, mas Iansan e Santa Bárbara não é a mesma
coisa?
BEATA
Não é não senhora! Santa Bárbara é uma santa. E Iansan é... é
coisa de candomblé, que Deus me perdoe!...
(benze-se repetidas vezes e sai)
CORO
Quem corta e prepara o pau
Quem cava e faz a gamela,
Toma a si todo o trabalho
E depois fica sem ela.
Mestre Coca, entra correndo.
COCA
(A Zé-do-Burro)
Meu camarada, trate de ir embora! Estão lhe arrumando uma
patota!
ZÉ
O quê?
COCA
Chegou um carro da Polícia! Eles estão com o Padre, na sacristia.
MINHA TIA
Vieram por causa dele?
COCA
Então!
ZÉ
Mas eu não roubei, não matei ninguém!
DEDÉ
Quer um conselho? Experiência própria, com a polícia, é melhor
fugir do que discutir.
COCA
Ande depressa que nós agüentamos eles aqui até você ganhar o
mundo!
ZÉ
Não, eu não vou fugir como qualquer criminoso, se estou com a
minha consciência tranqüila.
DEDÉ
Ele não se separa da cruz.
COCA
A gente esconde a cruz.
MINHA TIA
E de noite ele leva ela pra Iansan.
COCA
Vamos todo mundo levar! Todos os capoeiras da Bahia!
MINHA TIA
É a mesma coisa, meu filho! Iansan é Santa Bárbara. Eu lhe
mostro lá no “peji” a imagem da santa.
COCA
É preciso se decidir, meu camarada! Antes que seja tarde.
ZÉ
(Balança a cabeça, sentindo-se perdido e abandonado)
Santa Bárbara me abandonou! Por quê, eu não sei... não sei!
ROSA
(Desce a ladeira correndo)
Zé! Não adianta... não adianta mais... Falei com ele, mas não
adianta. A Polícia já está aí! Vem cercar a praça!
COCA
Eu não disse?
DEDÉ
É preciso andar depressa, meu irmão!
MINHA TIA
Some daqui, meu filho!
ROSA
Vamos, Zé!
ZÉ
Santa Bárbara me abandonou, Rosa!
ROSA
Se ela abandonou você, abandone também a promessa. Quem
sabe se não é ela mesma que não quer que você cumpra o
prometido?
ZÉ
Não... mesmo que ela me abandone... eu preciso ir até o fim...
ainda que já não seja por ela... que seja só pra ficar em paz
comigo mesmo.
Subitamente, abre-se a porta da igreja e entram o
Delegado, o Secreta, o Guarda, o Padre e o Sacristão.
SECRETA
(Aponta para Zé-do-Burro)
É esse aí.
(Avança para Zé-do-Burro, seguido do Delegado e do Guarda).
GUARDA
(Como que se desculpando)
Eu já cansei de pedir a ele pra sair daqui, seu Delegado, não
adiantou...
DELEGADO
(Faz o Guarda calar com um gesto autoritário)
Seus documentos.
ZÉ
(Estranha)
Documentos?...
DELEGADO
Carteira de identidade.
ZÉ
Tenho não...
DELEGADO
Outra carteira, outro documento qualquer.
ZÉ
Moço, eu vim só pagar uma promessa. A Santa me conhece, não
precisava trazer carteira de identidade.
DELEGADO
(Sorri irônico)
Pagar uma promessa... pensa que nós somos idiotas.
SECRETA
Não demora e ele conta a história do burro...
DELEGADO
Ele vai contar essas histórias todas mas é na Delegacia. Vamos,
acompanhe-me.
ZÉ
(Seu olhar vai do Delegado ao Secreta e ao Guarda, sem entender
o que se passa)
Acompanhar o senhor... pra quê?
DELEGADO
Mais tarde você verá. Sou delegado deste distrito. Obedeça.
ZÉ
Não posso. Não posso sair daqui.
DELEGADO
Não pode por quê?
COCA
Promessa, seu Delegado. Ele é crente.
DELEGADO
O Padre disse que ele ameaçou invadir a igreja. Pediu garantias.
SECRETA
Eu mesmo ouvi ele dizer que ia jogar uma bomba. Todo mundo
aqui é testemunha!
DELEGADO
Uma bomba, hem... Vamos à Delegacia... quero que o senhor me
explique isso tudo direitinho.
SECRETA
Vamos.
(Segura Zé-do-Burro por um braço mas este se desvencilha)
Que é? Vai reagir?
GUARDA
(Apaziguador)
Acho melhor o senhor obedecer...
DELEGADO
Se ele reagir, pior para ele. Não estou disposto a perder tempo e
conheço de sobra esses tipos. Só se entregam mesmo é a bala.
ROSA
Não!
ZÉ
Os senhores devem estar enganados. Devem estar me
confundindo com outra pessoa. Sou um homem pacato, vim só
pagar uma promessa que fiz a Santa Bárbara.
(Aponta para o Padre)
Aí esta o vigário para dizer se é mentira minha!
PADRE
É mentira, sim! E não somente mentira, também um sacrilégio!
ZÉ
Padre, o senhor não pode dizer que é mentira, que eu não fiz essa
promessa!
PADRE
Sim, talvez tenha feito, por inspiração de Satanás! Há quem diga
que não estamos mais em época de acreditar em bruxas. No
entanto, elas ainda existem! Mudaram talvez de aspecto, como
Satanás mudou de métodos. É mais difícil combatê-las agora,
porque são inúmeros os seus disfarces. Mas o objetivo de todas
continua a ser um só: a destruição da Santa Madre Igreja!
DELEGADO
Padre, este homem...
PADRE
Este homem teve todas as oportunidades para arrepender-se.
Deus é testemunha de que fiz todo o possível para salvá-lo. Mas
ele não quer ser salvo. Pior para ele.
DELEGADO
(Que ganhou decisão com o sermão do Padre)
Sim, pior para ele.
(Avança um passo na direção de Zé-do-Burro, que recua e fica
encurralado contra a parede).
ZÉ
(Decidido a resistir)
Não! Ninguém vai me levar preso! Não fiz nada pra ser preso!
DELEGADO
Se não fez não tem o que temer, será solto depois. Vamos à
Delegacia.
ROSA
Não, Zé, não vá!
GUARDA
É melhor... na Delegacia o senhor explica tudo.
DEDÉ
Não caia nessa, meu camarado.
ZÉ
Agora eu decidi: só morto me levam daqui. Juro por Santa
Bárbara, só morto.
SECRETA
(Vê a faca na mão de Zé-do-Burro)
Tome cuidado, Chefe, que ele está armado!
(Observa a atitude hostil dos capoeiras)
E essa gente está do lado dele!
COCA
Estamos mesmo. E aqui vocês não vão prender ninguém!
DELEGADO
Não vamos por quê?
MANOELZINHO
Porque não está direito!
DELEGADO
Estão querendo comprar barulho?
COCA
Vocês que sabem...
DELEGADO
Não se metam, senão vão se dar mal!
SECRETA
E é melhor que se afastem.
ROSA
Zé!
ZÉ
Me deixe, Rosa! Não venha pra cá!
Zé-do-Burro, de faca em punho, recua em direção à igreja.
Sobe um ou dois degraus, de costas. O Padre vem por trás
e dá uma pancada em seu braço, fazendo com que a faca vá
cair no meio da praça. Zé-do-Burro corre e abaixa-se para
apanhá-la. Os policiais aproveitam e caem sobre ele, para
subjugá-lo. E os capoeiros caem sobre os policiais para
defendê-lo. Zé-do-Burro desapareceu na onda humana.
Ouve-se um tiro. A multidão se dispersa como num estouro
de boiada, Fica apenas Zé-do-Burro no meio da praça, com
as mãos sobre o ventre Ele dá ainda um passo em direção à
igreja e cai morto
ROSA
(Num grito)
Zé!
(corre para ele)
PADRE
(Num começo de reconhecimento de culpa)
Virgem Santíssima!
DELEGADO
(Para o Secreta)
Vamos buscar reforço
(Sai, seguido do Secreta e do Guarda).
O Padre desce os degraus da igreja, em direção do corpo de
Zé-do-Burro.
ROSA
(Com rancor)
Não chegue perto!
PADRE
Queria encomendar a alma dele...
ROSA
Encomendar a quem? Ao Demônio?
O Padre baixa a cabeça e volta ao alto da escada. Bonitão
surge na ladeira. Mestre Coca consulta os companheiros
com o olhar. Todos compreendem a sua intenção e
respondem afirmativamente com a cabeça. Mestre Coca
inclina-se diante de Zé-do-Burro, segura-o pelos braços, os
outros capoeiras se aproximam também e ajudam a
carregar o corpo. Colocam-no sobre a cruz, de costas, com
os braços estendidos, como um crucificado. Carregam-no
assim, como numa padiola e avançam para a igreja.
Bonitão segura Rosa por um braço, tentando levá-la dali.
Mas Rosa o repele com um safanão e segue os capoeiras.
Bonitão dá de ombros e sobe a ladeira. Intimidados, o Padre
e o Sacristão recuam, a Beata foge e os capoeiras entram
na igreja com a cruz, sobre ela o corpo de Zé-do-Burro. O
Galego, Dedé e Rosa fecham o cortejo. Só Minha Tia
permanece em cena. Quando uma trovoada tremenda
desaba sobre a praça.
MINHA TIA
(Encolhe-se toda, amedrontada, toca com as pontas dos dedos o
chão e a testa)
Êparrei minha mãe!
E O PANO CAI LENTAMENTE.
Fim do livro
Cristóvão Lopes
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