sexta-feira, 25 de março de 2011

O Pagador de Promessas - Dias Gomes


Primeiro Ato - Primeiro Quadro

Ao subir o pano, a cena está quase às escuras. Apenas um jato de luz, da direita, lança alguma claridade sobre o cenário. Mesmo assim, após habituar a vista, o espectador identificará facilmente uma pequena praça, onde desembocam duas ruas. Uma à direita, seguindo a linha da ribalta, outra à esquerda, ao fundo, de frente para a platéia, subindo, encadeirada e sinuosa, no perfil de velhos sobrados coloniais. Na esquina da rua da direita, vemos a fachada de uma igreja relativamente modesta, com uma escadaria de quatro ou cinco degraus. Numa das esquinas da ladeira, do lado oposto, há uma vendola, onde também se vende café, refresco, cachaça etc.; a outra esquina da ladeira é ocupada por um sobrado cuja fachada forma ligeira barriga pelo acúmulo de andares não previsto inicialmente. O calçamento da ladeira é irregular e na fachada dos sobrados vêemse alguns azulejos estragados pelo tempo. Enfim, é uma paisagem tipicamente baiana, da Bahia velha e colonial, que ainda hoje resiste à avalancha urbanística moderna. Devem ser, aproximadamente, quatro e meia da manhã. Tanto a igreja como a vendola estão com suas portas cerradas. Vem de longe o som dos atabaques dum candomblé distante, no toque de Iansan. Decorrem alguns segundos até que Zé-do-Burro surja, pela rua da direita, carregando nas costas uma enorme e pesada cruz de madeira. A passos lentos, cansado, entra na praça, seguido de Rosa, sua mulher. Ele é um homem ainda moço, de 30 anos presumíveis, magro, de estatura média. Seu olhar é morto, contemplativo. Suas feições transmitem bondade, tolerância e há em seu rosto um “quê” de infantilidade. Seus gestos são lentos, preguiçosos, bem como sua maneira de falar. Tem barba de dois ou três dias e traja-se decentemente, embora sua roupa seja mal talhada e esteja amarrotada e suja de poeira. Rosa parece pouco ter de comum com ele. É uma bela mulher, embora seus traços sejam um tanto grosseiros, tal como suas maneiras. Ao contrário do marido, tem “sangue quente”. É agressiva em seu “sexy”, revelando, logo à primeira vista, uma insatisfação sexual e uma ânsia recalcada de romper com o ambiente em que se sente sufocar. Veste-se como uma provinciana que vem à cidade, mas também como uma mulher que não deseja ocultar os encantos
que possui. Zé-do-Burro vai até o centro da praça e aí pousa a sua cruz, equilibrando-a na base e num dos braços, como um cavalete. Está exausto. Enxuga o suor da testa.

(Olhando a igreja) É essa. Só pode ser essa. (Rosa pára também, junto aos degraus, cansada, enfastiada e deixando já entrever uma revolta que se avoluma).
ROSA
E agora? Está fechada.
É cedo ainda. Vamos esperar que abra.
ROSA
Esperar? Aqui?
Não tem outro jeito.
ROSA
(Olha-o com raiva e vai sentar-se num dos degraus. Tira o sapato). Estou com cada bolha d’água no pé que dá medo.
Eu também. (Contorce-se num ritus de dor. Despe uma das mangas do paletó). Acho que os meus ombros estão em carne viva.
ROSA
Bem feito. Você não quis botar almofadinhas, como eu disse.
(Convicto) Não era direito. Quando eu fiz a promessa, não falei em almofadinhas.
ROSA
Então: se você não falou, podia ter botado; a santa não ia dizer nada.
Não era direito. Eu prometi trazer a cruz nas costas, como Jesus. E Jesus não usou almofadinhas.
ROSA
Não usou porque não deixaram.
Não, nesse negócio de milagres, é preciso ser honesto. Se a gente embrulha o santo, perde o crédito. De outra vez o santo olha, consulta lá os seus assentamentos e diz: - Ah, você é o Zé-do-Burro, aquele que já me passou a perna! E agora vem me fazer nova promessa. Pois vá fazer promessa pro diabo que o carregue,
seu caloteiro duma figa! E tem mais: santo é como gringo, passou calote num, todos os outros ficam sabendo.
ROSA
Será que você ainda pretende fazer outra promessa depois desta? Já não chega?...
Sei não... a gente nunca sabe se vai precisar. Por isso, é bom ter sempre as contas em dia. (Ele sobe um ou dois degraus. Examina a fachada da igreja à procura de uma inscrição).
ROSA
Que é que você está procurando?
Qualquer coisa escrita... pra a gente saber se essa é mesmo a igreja de Santa Bárbara.
ROSA
E você já viu igreja com letreiro na porta, homem?
É que pode não ser essa...
ROSA
Claro que é essa. Não lembra o que o vigário disse? Uma igreja pequena, numa praça, perto duma ladeira...
(Corre os olhos em volta) Se a gente pudesse perguntar a alguém...
ROSA
Essa hora está todo o mundo dormindo. (Olha-o quase com raiva). Todo o mundo... menos eu, que tive a infelicidade de me casar com um pagador de promessas. (Levanta-se e procura convencê-lo). Escute, Zé... já que a igreja está fechada, a gente podia ir procurar um lugar pra dormir. Você já pensou que beleza agora uma cama?...
E a cruz?
ROSA
Você deixava a cruz aí e amanhã, de dia...
Podem roubar...
ROSA
Quem é que vai roubar uma cruz, homem de Deus? Pra que serve uma cruz?
Tem tanta maldade no mundo. Era correr um risco muito grande, depois de ter quase cumprido a promessa. E você já pensou; se me roubassem a cruz, eu ia ter que fazer outra e vir de novo com ela nas costas da roça até aqui. Sete léguas.
ROSA
Pra quê? Você explicava à santa que tinha sido roubado, ela não ia fazer questão.
É o que você pensa. Quando você vai pagar uma conta no armarinho e perde o dinheiro no caminho, o turco perdoa a dívida? Uma ova!
ROSA
Mas você já pagou a sua promessa, já trouxe uma cruz de madeira da roça até à igreja de Santa Bárbara. Está aí a igreja de Santa Bárbara, está aí a cruz. Pronto. Agora, vamos embora.
Mas aqui não é a igreja de Santa Bárbara. A igreja é da porta pra dentro.
ROSA
Oxente! Mas a porta está fechada e a culpa não é sua. Santa Bárbara : deve saber disso, que diabo.
(Pensativo) Só se eu falasse com ela e explicasse a situação...
ROSA
Pois então... fale!
(Ergue os olhos para o céu, medrosamente e chega a entreabrir os lábios, como se fosse dirigir-se à santa. Mas perde a coragem) Não, não posso...
ROSA
Por que, homem?! Santa Bárbara é tão sua amiga... Você não está em dia com ela?
Estou, mas esse negócio de falar com santo é muito complicado. Santo nunca responde em língua da gente... não se pode saber o que ele pensa. E além do mais, isso também não é direito. Eu prometi levar a cruz até dentro da igreja, tenho que levar. Andei sete léguas. Não vou me sujar com a santa por causa de meio metro.
ROSA
E pra você não se sujar com a santa, eu vou ter que dormir no chão, no “hotel do padre”. (Olha-o com raiva e vai deitar-se num dos degraus da escada da igreja). E se tudo isso ainda fosse por alguma coisa que valesse a pena...
Você podia não ter vindo. Quando eu fiz a promessa, não falei em você, só na cruz.
ROSA
Agora você diz isso. Dissesse antes...
Não me lembrei. Você também não reclamou...
ROSA
Sou sua mulher. Tenho que ir pra onde você for ..
Então... Rosa ajeita-se da melhor maneira possível no degrau, enquanto Zé-do-Burro, não menos cansado do que ela faz um esforço sobre-humano para não adormecer. Cochila, montando guarda à sua cruz. Subitamente, irrompem na praça Marli e Bonitão. Ela tem, na realidade, vinte e oito anos, mas aparenta mais dez. Pinta-se com algum exagero, mas mesmo assim não consegue esconder a tez amareloesverdeada. Possui alguns traços de uma beleza doentia, uma beleza triste e suicida. Usa um vestido muito curto e decotado, já um tanto gasto e fora de moda, mas ainda de bom efeito visual. Seus gestos e atitudes refletem o conflito da mulher que quer libertar-se de uma tirania que, no entanto, é necessária ao seu equilíbrio psíquico - a exploração de que é vítima por parte de Bonitão vem, em parte, satisfazer um instinto maternal frustrado. Há em seu amor e em seu aviltamento, em sua degradação voluntária, muito de sacrifício maternal, ao qual não falta, inclusive, um certo orgulho. Bonitão é insensível a tudo isso. Ele é frio e brutal em sua “profissão”. Encara a exploração a que submete Marli e outras mulheres, como um direito que lhe assiste, ou melhor, um dom que a natureza lhe concedeu, juntamente com seus atributos físicos. Em seu entender, sua beleza máscula e seu vigor sexual, aliados a um direito natural de subsistir, justificam plenamente seu modo de
vida. É de estatura um pouco acima da média, forte e de pele trigueira, amulatada. A ascendência negra é visível, embora os cabelos sejam lisos, reluzentes de gomalina e os traços regulares, com exceção dos lábios grossos e sensuais e das narinas um tanto dilatadas. Veste-se sempre de branco, colarinho alto, sapatos de duas cores. Descem a ladeira, ela na frente, a passos rápidos. Ele a segue, como se viessem já de uma discussão.
BONITÃO
Espere. Não adianta andar depressa...
MARLI
É melhor discutirmos isso em casa.
BONITÃO
(Alcança-a e obriga a parar torcendo-lhe violentamente o braço) Não, vamos resolver aqui mesmo. Não tenho nada que discutir com você...
MARLI
(Livra-se dele com um safanão, mas seu rosto se contrai dolorosamente)
Estúpido!
BONITÃO
Ande, vamos deixar de mas-mas. Passe pra cá o dinheiro.
MARLI
(Tira do bolso do vestido um maço de notas e entrega a ele) Não podia esperar até chegar em casa?
BONITÃO
(Chega mais para perto do jato de luz e conta as notas, rapidamente) Só deu isto?
MARLI
Só. A noite hoje não foi boa. Você viu, o “castelo” estava vazio.
BONITÃO
E aquele galego que estava conversando com você quando cheguei?
MARLI
Uma boa conversa. Queria se fretar comigo. Ficou mangando a noite toda e não se resolveu...
BONITÃO
(Mete subitamente a mão no decote de Marli e tira de entre os seios uma nota) Sua vaca! Ele faz menção de dar-lhe um bofetão, ela corre e refugia-se atrás da cruz. Zé-do-Burro desperta de sua semisonolência.
MARLI
Eu precisava desse dinheiro. Pra pagar o quarto, você sabe.
BONITÃO
Não gosto de ser tapeado. Por que não pediu?
MARLI
E você dava?
BONITÃO
Claro que não. (Guarda o dinheiro na carteira) Isso ia fazer falta no meu orçamento. Tenho compromissos e você bem sabe que não gosto de pedir dinheiro emprestado. É uma questão de feitio.
MARLI
E eu, que faço pra pagar o quarto? Já devo dois meses e a dona anda me olhando atravessado.
BONITÃO
(Indiferente) É um problema seu. Tenho muita coisa em que pensar.
MARLI
Eu sei, eu sei no que você pensa...
BONITÃO
(Sorri e há em seu sorriso uma sombra de ameaça) Penso, por exemplo, que você, de três meses pra cá, está fazendo muito pouco. A Matilde está fazendo quase o dobro...
MARLI
(Compreende a ameaça, avança para ele sacudida pelo ciúme e pelo pavor de perdê-lo) Eu sei, você está dando em cima daquela arreganhada. Ela mesma anda dizendo.
BONITÃO
Eu não dou em cima de mulher nenhuma, você sabe disso. É uma questão de princípios.
MARLI
Quer dizer que é ela quem está dando em cima de você!
BONITÃO
Ela perguntou se eu estava precisando de dinheiro.
MARLI
(Ansiosamente) E você?...
BONITÃO
Eu só pedi umas informações de ordem técnica, arrecadação diária etc...
MARLI
(Agarra-o freneticamente pelos braços) Bonitão, você não aceitou o dinheiro dela, aceitou?! Você não aceitou o dinheiro daquela vagabunda!
BONITÃO
(Olha-a friamente) E que tinha, se aceitasse? Eu também preciso viver.
MARLI
Mas o que eu lhe dou não chega?!
BONITÃO
Você compreende, eu também tenho ambições. Se eu não tivesse qualidades, bem. Mas eu sei que tenho qualidades. É justo que viva de acordo com essas qualidades.
MARLI
Mas o que lhe falta? Eu não tenho lhe dado tudo que você me pede? Se for preciso, dou mais ainda. Não pense que é por medo de que você me largue pela Matilde, não. (Alisa sua roupa e admira-o, maternalmente) É porque tenho prazer em ver você vestido com a roupa que eu dei, com os sapatos que eu comprei e com a carteira recheada de notas que eu ganhei pra você. Tenho orgulho, sabe?
BONITÃO
(Desvencilha-se dela) Pois então veja se na próxima vez não esconde dinheiro no decote. Tenho certeza de que a Matilde não é capaz de um gesto feio desses.
MARLI 
Ela é capaz de coisas muito piores. Se você quiser, eu lhe conto.
BONITÃO
(Bruscamente) Não quero ouvir nada. Quero é que você vá pra casa.
MARLI
(Decepcionada) Você não vai comigo?
BONITÃO
Não, vou ficar um pouco mais por aqui. Vá na frente que daqui a pouco eu apareço por lá.
MARLI
(Enciumada) E o que é que você vai ficar fazendo na rua a uma hora dessas?
BONITÃO
(Com muita seriedade) Ora, mulher, eu preciso trabalhar! (Acende um cigarro, abstraindo-se da presença de Marli, que o fita como um cão escorraçado pelo dono. Só então este se mostra intrigado com a cruz no meio da praça. Examina-a curiosamente e por fim dirige-se a Zé-do-Burro) É sua? Zé balança a cabeça em sinal afirmativo. Marli vai até à escada da igreja, senta-se num degrau, sem se incomodar com Rosa, deitada mais acima, tira os sapatos e movimenta os dedos doloridos.
BONITÃO
(Nota a igreja, faz uma associação de idéias) Encomenda?
Não, promessa.
BONITÃO
(A princípio parece não entender, depois ri). Gozado.
Não acho.
BONITÃO
Não falei por mal. Eu também sou meio devoto. Até uma vez fiz promessa pra Santo Antônio...
Casamento?
BONITÃO
Não, ela era casada.
E conseguiu a graça?
BONITÃO
Consegui. O marido passou uma semana viajando...
E o senhor pagou a promessa?
BONITÃO
Não, pra não comprometer o santo.
Nunca se deve deixar de pagar uma promessa. Mesmo quando é dessas de comprometer o santo. Garanto que da próxima vez Santo Antônio vai se fingir de surdo. E tem razão.
BONITÃO
O senhor compreende, Santo Antônio ia ficar mal se soubessem que foi ele quem fez o trouxa viajar. (Nota que Marli ainda não se foi) Que é que você ainda está fazendo aí?
MARLI
Esperando você.
BONITÃO
(Vai a ela) Já lhe disse que vou depois. Vai ficar agora grudada em mim?
MARLI
(Levanta-se) Escute, Bonitão... você não podia deixar eu ficar ao menos com aquela nota?
BONITÃO
Já lhe disse que não. Não insista.
MARLI
Mas eu preciso pagar o quarto!
BONITÃO
O quarto é seu, não é meu.
MARLI
Mas o dinheiro é meu. É justo que eu fique ao menos com algum.
BONITÃO
É justo por quê?
MARLI
Porque fui eu que trabalhei.
BONITÃO
E desde quando trabalhar dá direito a alguma coisa? Quem lhe meteu na cabeça essas idéias? (Olha-a de cima a baixo, com desconfiança) Está virando comunista? Marli fita-o com ódio e sai bruscamente pela direita. Bonitão acompanha-a com o olhar e depois sorri, tira o dinheiro do bolso e torna a contá-lo.
(Candidamente) Esse dinheiro... é dela mesmo?
BONITÃO
(Guarda o dinheiro) Bem, esta é uma maneira de olhar as coisas. E toda coisa tem pelo menos duas maneiras de ser olhada. Uma de lá pra cá, outra de cá pra lá. Entendeu?
Não...
BONITÃO
Não vale a pena explicar. É uma questão de sensibilidade.
O senhor é... marido dela?
BONITÃO
Não, sou assim uma espécie de fiscal do imposto de renda. (Sobe, como se fosse sair, mas se detém diante de Rosa, cujo vestido, levantado, deixa ver um palmo de coxa).
ROSA
(Abre os olhos, sentindo que está sendo observada) Que é?
BONITÃO
Nada... estava só olhando... (Rosa conserta o vestido.)
BONITÃO
Não deve ser lá muito confortável essa cama... (Rosa olha-o com raiva.)
BONITÃO
(Olha-a mais detidamente) E olhe que você bem merece coisa melhor.
ROSA
Diga isso a ele (Aponta Zé-do-Burro).
BONITÃO
A ele?
ROSA
Meu marido.
BONITÃO
Ah, você também veio pagar promessa...
ROSA
Eu não, ele. E por causa dele estou dormindo aqui, no batente de uma igreja, como qualquer mendiga. (Senta-se)
Não deve faltar muito para abrir a igreja. O senhor sabe que horas são?
BONITÃO
(Consulta o relógio) Um quarto para as cinco.
Sabe a que horas abre a igreja?
BONITÃO
Não, não é bem o meu ramo...
Mas às seis horas deve ter missa. Hoje é o dia de Santa Bárbara...
ROSA
(Ressentida) Às seis horas. Tenho que agüentar mais de uma hora ainda neste batente duro. E a promessa não é minha!
BONITÃO
É capaz da porta da sacristia já estar aberta.
O senhor acha?
BONITÃO
Padre acorda cedo...
Às cinco horas?
BONITÃO
Então; tem que se preparar para a missa das seis.
É verdade...
BONITÃO
Por que o senhor não vai ver?
É... (Hesita um pouco)
BONITÃO
A porta é do lado de lá...
Rosa, você vigia a cruz, eu vou dar a volta... não demoro. (Sai)
BONITÃO
Pode ir sem susto que eu ajudo a tomar conta de sua cruz. (Depois que Zé-do-Burro sai) das duas.
ROSA
Só que uma ele carrega nas costas e a outra... se quiser que vá atrás dele. (Levanta-se)
BONITÃO
E você não é mulher para andar atrás de qualquer homem... ao contrário, é uma cruz que qualquer um carrega com prazer...
ROSA
(Com recato, mas no fundo envaidecida) Ora, me deixe.
BONITÃO
Palavra. Seu marido não lhe faz justiça. Isso não é trato que se dê a uma mulher... mesmo sendo mulher da gente.
ROSA
Se ele faz pouco de mim, faz pouco do que é dele.
BONITÃO
Não discuto. Só acho que você não é mulher para dormir em batente de igreja. Tem qualidades para exigir mais: boa cama, com colchão e melhor companhia.
ROSA
Não fale em cama pra quem tem o corpo moído, como eu.
BONITÃO
Tão cansada assim?
ROSA
Duas noites sem dormir, sete léguas no calcanho...
BONITÃO
Sete léguas? Quantos quilômetros?
ROSA
Sei lá... só sei que sete vezes amaldiçoei aquele dia em que fui roubar caju com ele na roça dos padres...
BONITÃO
Ah, foi assim...
ROSA
A gente faz cada besteira...
BONITÃO
Quanto tempo faz?
ROSA
Oito anos...
BONITÃO
E você casou com ele?
ROSA
Casei.
BONITÃO
Sem gostar?
ROSA
(Depois de um tempo) Gostava, sim. Sabe, na roça, o homem é feio, magro, sujo e mal vestido. Ele até que era dos melhores. Tinha um sítio...
BONITÃO
E daí?
ROSA
Daí, eu achei que ele garantia tudo que eu queria da vida: homem e casa. A gente quando é franga, com licença da palavra, tem merda na cabeça
BONITÃO
(Algo interessado) Ele tem um sítio, é?
ROSA
Tinha, agora tem só um pedaço. Dividiu o resto com os lavradores pobres.
BONITÃO
Por quê?
ROSA
Fazia parte da promessa.
BONITÃO
Que é que está esperando? Virar santo?
ROSA
Não brinque. Pelo caminho tinha uma porção de gente querendo que ele fizesse milagre. E não duvide. Ele é capaz de acabar fazendo. Se não fosse a hora, garanto que tinha uma romaria aqui, atrás dele.
BONITÃO
Depois de cumprir a promessa, ele vai voltar pra roça?
ROSA
Vai.
BONITÃO
E você?
ROSA
Também. Por quê?
BONITÃO
Se você viesse pra cidade, eu podia lhe garantir um bonito futuro...
ROSA
Fazendo o quê?
BONITÃO
Isso depois se via.
ROSA
Eu não sei fazer nada.
BONITÃO
(Segura-a por um braço) Mulheres como você não precisam saber coisa alguma, a não ser o que a natureza ensinou... Rosa puxa o braço bruscamente, depois de manter, por alguns segundos, um olhar de desafio.
ROSA
Não faça isso! Ele pode voltar de repente
BONITÃO
Ele deve ter ido acordar o padre. (Volta a aproximar-se dela)
ROSA
(Desvencilha-se dele novamente) Me solte. (Volta a sentar-se na escada) Eu queria era dormir. Dava a vida por uma cama... com um lençol branco... e uma bacia d’água quente onde meter os pés.
BONITÃO
Eu posso lhe arranjar um hotelzinho aqui perto... (Rosa lança-lhe um olhar hostil.)
BONITÃO
Isso sem segundas intenções... só pra você dormir, descansar dessa romaria.
ROSA
Não quero me meter em encrencas.
BONITÃO
Não há nenhum perigo de encrenca. Sou muito cotado com o porteiro do hotel e tenho boas relações com a polícia. Nesta zona, todos respeitam o Bonitão.
ROSA
(Quase sensualmente) Bonitão.
BONITÃO
(Vaidoso) É um apelido...
ROSA
(Olha-o de cima a baixo).
BONITÃO
(Senta-se junto dela)
ROSA
Não chegue perto, estou muito suada.
BONITÃO
No hotel tem banheiro... para quem andou sete léguas, um banho de chuveiro e depois uma cama com colchão de mola...
ROSA
Colchão de mola mesmo?
BONITÃO
Então...
ROSA
Nunca dormi num colchão de mola. Deve ser bom.
BONITÃO
Uma delícia... Entra Zé-do-Burro pela direita. Bonitão levanta-se.
Tudo fechado. Tem jeito não.
ROSA
(Revoltada) E eu que agüente este batente duro até Deus sabe lá que horas.
Paciência, Rosa. Seu sacrifício fica valendo.
ROSA
Pra quem? Pra Santa Bárbara? Eu não fiz promessa nenhuma.
Oxente! Melhor ainda. Amanhã, quando você fizer, a santa já está lhe devendo!
ROSA
Nunca vi santo pagar dívida. (Volta a deitar-se no degrau)
BONITÃO
(Assumindo um ar tão eclesiástico quanto possível) A senhora faz mal em ser tão descrente. Quem sabe se Santa Bárbara já não está providenciando o pagamento dessa dívida? E quem sabe se não escolheu a mim pra pagador?
(Muito ingenuamente) O senhor não era fiscal do imposto de renda? Agora é pagador de Santa Bárbara...
BONITÃO
Meu caro, com o custo de vida aumentando dia a dia, a gente tem que se virar. Mas não é esse o caso. Digo que Santa Bárbara já deve estar tratando de liquidar o débito hoje contraído com sua senhora, porque me fez passar por aqui esta noite.
Não vejo nada de mais nisso.
BONITÃO
Porque o senhor não sabe que eu posso, em cinco minutos, arranjar uma boa cama, com colchão de mola, num hotel perto daqui.
Pra ela?
BONITÃO
E pro senhor também.
Eu não posso. Tenho que esperar abrir a igreja. Se soubesse que não iam roubar a cruz...
BONITÃO
(Rapidamente) Oh, não, a cruz não deve ficar sozinha. Esta zona está cheia de ladrões. A cruz é de madeira e a madeira está caríssima.
É o que eu acho. Não devo sair daqui.
BONITÃO
Mas eu posso ficar tomando conta, enquanto o senhor e sua senhora vão descansar.
O senhor?
BONITÃO
E por que não?
Mas a igreja pode demorar a abrir. Pelo menos uma hora ainda.
BONITÃO
Eu espero. Sua esposa me contou a caminhada que fizeram, o senhor carregando nas costas essa cruz através de léguas e léguas, para cumprir uma promessa. Isso me comoveu.
Mas não é justo. Não foi o senhor quem fez a promessa.
ROSA
Ele está querendo ajudar, Zé.
Mas não é direito. Eu prometi cumprir a promessa sozinho, sem ajuda de ninguém. E essa história de dormir no hotel não está no trato.
BONITÃO
E sua senhora está no trato?
Rosa? Não, ela pode ir.
BONITÃO
Nesse caso, se quiser que eu leve sua senhora... ao menos ela descansa enquanto espera pelo senhor.
Você quer, Rosa? Quer ir esperar por mim no hotel? (Volta-se para Bonitão) É hotel decente?
BONITÃO
(Fingindo-se ofendido) Ora, o senhor acha que ia indicar...
Desculpe, é que sempre ouvi dizer que aqui na cidade...
BONITÃO
Pode confiar em mim.
É longe daqui?
BONITÃO
Não, basta subir aquela ladeira...
Que é que você diz, Rosa?
ROSA
(Percebendo o jogo de Bonitão) Quero não, Zé. Prefiro ficar aqui com você.
Ainda agora mesmo você estava se queixando.
BONITÃO
Não é pra menos. Deve estar exausta. Sete léguas.
Afinal de contas, você tem razão, a promessa é minha, não é sua. Vá com o moço, não tenha acanhamento.
BONITÃO
Eu vou com ela até lá, apresento ao porteiro, que é meu conhecido - sim, porque uma mulher sozinha, o senhor sabe, eles não deixam entrar - depois volto para lhe dizer o número do quarto. Daqui a pouco, depois de cumprir a sua promessa, o senhor vai pra lá.
Se o senhor fizesse isso, era um grande favor. Eu não posso me afastar daqui.
BONITÃO
Nem deve. Primeiro, Santa Bárbara.
ROSA
Zé, é melhor eu ficar com você...
Pra que, Rosa? Assim você vai logo descansar numa boa cama, não precisa ficar aí deitada nesse batente frio...
BONITÃO
Um perigo! Pode pegar uma pneumonia.
ROSA
(Inicia a saída. Pára, hesitante. Pressente o perigo que vai correr. Procura, com o olhar, fazer Zé-do-Burro compreender o seu receio) Zé...
Ahn, sim. (Enfia a mão no bolso, tira um maço de notas) Pode ser que precise pagar adiantado...
ROSA
(Recebe o dinheiro. Encara o marido) Talvez seja melhor, depois de entregar a cruz, você mandar
também rezar uma missa em ação de graças...
(Sem entender o alcance da sugestão) É, não é má idéia. Rosa sobe a ladeira e Bonitão a segue.
BONITÃO
(Saindo) Volto num minuto.
Está bem. (Senta-se ao pé da cruz e procura uma maneira de apoiar o corpo sobre ela. Aos poucos, é vencido pelo sono. As luzes se apagam em resistência)

Professor Cristóvão Lopes

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